Precisa-se de leitores



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(Ilustração: Levi Noli/ Revista Berro)

“E a palavra ‘Poética’ só desperta agora a ideia de prescrições incômodas e antiquadas. Acreditei então poder resgatá-la em um sentido que contempla a etimologia, sem ousar, contudo, pronunciá-la Poïétique (…). O fazer, o poïein, do qual desejo me ocupar, é aquele que termina em algo que se convencionou chamar de obras do espírito. São aquelas que os espíritos fazem para seu próprio uso, empregando para esse fim todos os meios físicos que possam lhe servir.” (Paul Valéry)

 

Numa fábrica de sonhos localizada às margens da estrada de um vilarejo ignoto e equidistante ao Sul do Equador, um maltrapilho peregrino anônimo dependurou uma placa de cobre, com inusitado anúncio de emprego, talhado em letras toscas e desalinhadas, sobre uma possível perspectiva de sobrevivência ou libertação:

PRECISA-SE DE LEITORES.

 

No arrabalde longínquo povoado por habitantes cegos e analfabetos, o imprevisto edital de ganha-pão causou insuportável híbrido de estranheza e euforia aos habitantes do lugar, quando a airada e míope aldeã de nomeada Maria Oveira soletrou a mensagem aos operários iletrados do lugarejo. Deu-se, então, que o visionário andarilho abriu um livro e declamou inúmeros poemas das mais distintas origens de autoria, épocas e regiões dos quatro cantos do hemisfério. Após o recital literário, o pensador apócrifo e inominado explicitou que os ineptos pretendentes ao cargo de Leitor não deveriam dispor de Curriculum Vitae, carteira de identidade ou trabalho, certidão de nascituro ou fotografia. Entretanto, caso fossem admitidos para a labuta de leitura na antiga e abandonada fábrica de sonhos, os funcionários recém-contratados teriam direitos e deveres de se habilitar pelo ofício da imaginação, por todo expediente desde a admissão até a aposentadoria.   

Como não houvesse quem se reconhecesse capaz de exercer tal profissão, num ímpeto de lucidez e audácia, o tresloucado Benjamin Quiroga deliberou sobre o fato de que o forasteiro adventício habilitasse todos aqueles que desejassem se candidatar ao cargo ou função, que se reunissem no largo público defronte à capela caiada do vilarejo, a fim de que se alfabetizassem pela Poesia, de sorte que se capacitassem às exigências do pleito lírico, que pleiteavam para sustento de família. De feita, a plateia, esfomeada e sedenta, se acotovelara ao redor do visionário alquimista no pátio da ermida, mui ávida pela aprendizagem por intermédio da arte de Luís de Camões, Goethe, Baudelaire, Fernando Pessoa, Rimbaud, Federico García Lorca, Mallarmé, Octávio Paz, Carlos Drummond de Andrade etc.

Neste ínterim, o viajante-orador desconhecido discursou de uma maneira tão fascinante e mágica que, de sua voz grave e fecunda, desenharam-se horizontes de arco-íris multicolores, recortados pelos cânticos maviosos dos rouxinóis barítonos e pelo voo acrobático das borboletas bailarinas, por sobre os desertos labirínticos daqueles concidadãos navegantes do alto-mar da existência sem bússola de instrução:

–– Segundo o filósofo grego Aristóteles, a diferença entre a História e a Poesia é que uma diz o que aconteceu, ao passo que a outra, o que poderia acontecer, sendo que a Poesia é mais filosófica e mais séria que a História, pois a Poesia revela o universal; e a História, o particular. Por esta razão, a fábrica de sonhos precisa de Leitores que se humanizem por intermédio dos poetas, bardos, vates, menestréis e trovadores, de modo a se deflagrar a luz mais ínfima e dilacerante do espírito humano com a seriedade filosófica a desvendar-se pela mais mágica e fascinante das invenções do deus egípcio Thoth, a Escrita.                          

Entre aplausos e silêncios, os desatentos e abismados ouvintes balbuciavam, unissonamente:                                                                                                        

–– El-Rey!… El-Rey!… El-Rey!…  

Não obstante, como se descobrissem a chave do enigma da vida, o pregador não identificado, rouco e malroupido, foi alvejado por injúria mordaz e ultrajante, proferida pelo benemérito d. Ambrósio de Azevedo Malta, enfurecido pela audácia do retirante ádvena, que se atrevera a proferir Poesia, ao invés de ofertar a água benta e o pão nosso de cada dia aos compatriotas embotados pela cáustica ignorância congênita e hereditária:

–– Para longe deste arraial próspero e sombrio, ó insigne flibusteiro de ideias!… –– enxotou-o o manda-chuva.

Foi quando o Homem disse-lhe, paulatinamente:

–– Tu me proíbes de ministrar Poesia aos plebeus desta circunvizinhança miserável e desamparada, ó Barrabás das inteligências!?!…. Pois saibas que ireis para as mais remotas paragens dos confins da Terra, conforme tu me mandaste, mandrião do reino; no entretanto, esta aldeia há de ser condenada às Trevas da catequização da estupidez ad aeternum!…

Sem aguardo de réplica, o vagamundo nostradâmico partiu sem se aperceber de que o estribilho nobiliárquico se avultara pela exaltação de um mito simbólico, a batizá-lo pela primeira vez em seu percurso acólito e subscrito:

–– El-Rey!… El-Rey!… El-Rey!…

Nisto, o enigmático andejo fora acometido pela multidão delirante e indômita, que lhe rasgava a indumentária de algodão no afã de lhe tocar a face enegrecida coberta pela barba alva e rústica, endeusando-o, quiçá, pela necessidade absoluta de redenção ou idolatria. No interregno, os fiéis seguidores do viandante arrastaram-no para dentro dos portões da povoação; e, à medida que o intento poético universal e particular se apossava dos espíritos pagãos pela réstia de perceptibilidade, de modo a reabilitá-los dum aprisionamento d’alma, os devotos o legitimavam como Mártir, cujos tentáculos os alforriavam sãos e salvos das masmorras inexatas de si mesmos.

À luz do ajuizamento, os aldeões sublevados depuseram os antigos mandatários em cadafalso público, diante das retinas outrora tão logradas pela atroz falta de argúcia e atilamento, a que foram subjugados por décadas e décadas pelos opressores desta República súdita e inaudita. Em meio à cerimônia de posse, proclamou-se, por unanimidade de audiência, o excêntrico utopista Imperador dos Trópicos, que, ato subjacente, decretou o Estatuto do Leitor.

Todo cidadão tem o direito e o dever de se tornar Leitor, de acordo com o que sanciona a seguinte Lei:

Art. 1. Este Estatuto estabelece normas de proteção e defesa do Leitor;

Art. 2. Considera-se Leitor, para os efeitos desta Lei, a pessoa física que se organize para o fim de se constituir e se habilitar de maneira voluntária pela prática da leitura, bem como apoiar institutos responsáveis pela disseminação da literatura de qualquer gênero, natureza ou modalidade;

Art. 3. O Leitor é toda pessoa física que, a partir de sua vivência humana e intelectual com palavra escrita, aprecie, apóie, acompanhe individualmente e/ou se associe a qualquer instituição de defesa do hábito de leitura, por intermédio de determinada modalidade a ser divulgada por editoração de obras impressas ou pela internet;

Art. 4. A disseminação da prática de Leitura é de responsabilidade do poder público, das instituições de ensino de nível fundamental, médio e superior, dos grêmios e academias de letras, dos círculos e bienais do livro, dos fóruns, simpósios e festas literárias, das associações de pais e mestres, bem como daqueles cidadãos que promovem, organizam, coordenam ou participam dos eventos culturais com o nítido intento de formação do Leitor;

Art. 5. São deveres da República Federativa do Brasil e do Ministério da Educação e Cultura o irrevogável compromisso com a liberdade de expressão através de legível acessibilidade à veiculação de ideias, mediante registro em livros, jornais, revistas, sites etc., bem como correspondência por mediação de mensagem postal ou eletrônica;

Art. 6. É direito do todo Leitor a prática do livre arbítrio perante a opção de gênero literário ou científico, idioma, diversificação temática e predileção autoral, independentemente de etnia, credo e identidade do escritor responsável pela produção veiculada em todo território nacional;

Art. 7. O Leitor deverá ter acesso às bibliotecas e laboratórios de informática, locais em que, constitucionalmente, lhe será assegurada a acessibilidade e instrumentação no tocante ao ato de leitura, sobretudo aos portadores de deficiência visual ou síndrome de analfabetismo;

Art. 9. As obrigações dos Leitores abrangem, inclusive, a atenção à publicação de obras por intermédio de romances, resenhas, artigos científicos, teses e ensaios, crônicas, e-mails ou pombo-correio, dissertações, blogs, gibis, pasquim etc., a fim de que seja promovida a prática de leitura, com suas respectivas alusões históricas, políticas ou simbólicas através de polissemias, metáforas, alegorias e signos;

Art. 10. Serão divulgadas campanhas de reabilitação dos analfabetos e iletrados funcionais por meio dos veículos de comunicação (televisão, rádio, outdoor, avião monomotor, cartaz, panfleto, cinema, espetáculo teatral, circo, internet etc.), através de propagandas governamentais periódicas e também por intermédio de redes sociais, conversa de botequins e afins;

Art. 11. É dever incontestável das entidades públicas e/ou privadas, responsáveis pela disseminação da prática de Leitura, atender as reclamações dirigidas ao serviço de fiscalização e atendimento, nos casos relacionados à violação de seus direitos e interesses aos órgãos de defesa e proteção do Leitor;

Art. 12. Adverte-se que o não cumprimento das condições estabelecidas neste Estatuto do Leitor implicará em responsabilidade civil por infração de arbitrariedade intelectual, de vez que o Ministério Público colocar-se-á à disposição a fim de que as vítimas da inépcia educativa, vulgo ignorância, encaminhem denúncias ao Conselho Tutelar de Leitura.

Art. 13. Sem prejuízo das demais sanções cabíveis, ao órgão de administração pública ou privada que violar ou de qualquer forma concorrer para a violação do disposto nesta lei, observado o devido processo legal, incidirão as devidas penas judiciais e intelectivas;

Art. 14. Informo que o Conselho Nacional de Leitura (CNL) autorizará e promoverá no prazo de quarenta e cinco dias, contado da publicação desta lei, a promulgação do Estatuto do Leitor, à luz da Carta Magna, em seus preceitos de Justiça, Educação e Legalidade.

Enfim, no chão de terra do vilarejo ignoto e equidistante ao Sul do Equador, às margens de uma fábrica de sonhos, abrolhou uma frágil flor de consciência, a que, com água benta, sal da terra e pia batismal, denominaram Liberdade.   

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Wander Lourenço é pós-doutorado em Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa; Doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (2006); diretor dos documentários “Carlos Nejar – Dom Quixote dos Pampas”; “Nélida Piñon, a dama de pétalas”; e “O Cravo e a lapela – Cinebiografia de Ricardo Cravo Albin”. Autor dos livros O Dramaturgo Virgem (2005); Com licença, senhoritas (2006); Iniciação à Análise Textual (2006); Literatura e Poder – Org. Lucia Helena e Anélia Pietrani (2006); O Enigma Diadorim (2007); Solar das Almas e outras peças (2008), Eu, psicógrafo – Teatro (2011), Antologia Teatral (2013); As aventuras da Bruxinha Lelé (2014), Dramatologia (2017); A lenda do Sabiá-Pererê (2019); Poesia (2020); Terrae Brasilis – Romance (2022).


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