A Nossa Casa



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Ramon Sales

Falho em recordar-me desde quando me senti em casa. Enfrentei a rede e a bagunça, na manha, até encontrar um mínimo de organização e uma cama de casal de mola. Desde então ficou mais fácil, mas ainda penso ter vindo antes destes a sensação de lar. O vitral foi de suma importância. Ligando o quarto à varanda, filtra a luz de fora em seu desenho de rosa banhada pelo Sol. Rosa à esquerda, Sol à direita. Creio que o dono anterior não gostava muito de claridade: tanto a porta pra varanda como a janela lateral têm películas fumê. O vitral, tentou pintar de preto as partes incolores. Começou da esquerda para a direita, mas desistiu. O resultado só incrementa a semiótica da pintura in vitro, agora que a rosa barra a luz do sol de vidro e cria uma sombra concreta à sua esquerda. Deixo-o sempre entreaberto, com a convicção de que é ele que traz os dentes-de-leão que passei a ver quase todos os dias.

A varandinha é poesia pura. Decorei-a tal qual a do falecido pai, lembrando que, naquela mesa, ele contava histórias que hoje, na memória, eu guardo e sei de cor. O verde ajudou muito, desde o lírio-dos-poetas, que dei de presente óbvio à minha poesia particular, à mangueira. Ah, a mangueira… Tenho-a como minha. Deitado, vejo, através da janela e do vitral, toda sua copa. Parece não gostar das rajadas de vento. Toda vez que estas fazem uma visita, ela fantasia-se de oceano e faz que nem mar revolto, levando e trazendo onda. No chuá que se faz desse encontro, tornou-se comum perguntarem se está chovendo. Esgueirando o braço entre as grades de proteção, posso tocar suas folhas já sentindo os pelinhos encravados entre os dentes das mangas que tão por vir.

Disseram-me que dormir sob uma mangueira suga suas energias aos poucos. Estando no mesmo nível dela, contudo, sinto como se a energia que ela suga de baixo traz pra cima e me presenteia toda manhã, quando acordo com a rebarba de luz da alvorada e me ponho à mesinha da varanda para fumar um cigarro, ignorando os dejetos dos pombos por pura preguiça de limpá-los.

A “nudist area” é a mais modesta, talvez pelo próprio nome, cravado por uma placa na parede. Fora o pufe inflável, que às vezes serve de bola futebol, conta com um sofá pequeno para os que não acompanham a chinfra e uma galeria de quadros não pendurados que me lembram todo dia o quanto eu não tenho pintado o que sinto. Ainda bem que escrevo.

A sala, banhada pelo verde que vem de fora, reflete aos passantes toda a energia acumulada por tantos anos pela mangueira. A coleção de discos de vinil exerce função importantíssima na manutenção disso. O toca discos, sempre ligado, apedreja qualquer ouvinte desavisado com rasgos do sax de Coltrane, o coração bobo de Alceu, o arrepio das melodias de Joan Baez e o portunhol de la Canción Por La Unidad de Latino America. A cadeira que era pra estar no meu quarto, deixei ali, para me esparramar sem medo de cair pra trás, apoiando os pés no pufe, quando quisesse sair das almofadas dos pallets e cansado do calor que faz o couro do sofá. Nela me sinto maestro das orquestras de vinil.

Na cozinha, o bem mais precioso. Não é o filtro de barro. Trouxe a geladeira do ateliê que fechei, com medo de ser pequena demais para três pessoas, mas seguro de que aguentaria por algum tempo. Tempo esse que é presente, espalhado em ternura por toda a porta dela, afixado em ímãs na forma de recados e textos, tanto dos três ocupantes dos quartos como dos que ainda não sabem que também moram ali. Passou de guardadeira de alimentos a vitrine de amor.

Precipitei-me. A geladeira guarda bens preciosos, mas os presentes nela exibidos são fruto do acolhimento que a própria casa traz a todas e a todos que ela frequentam. Ela plasma a pulsação de cada pessoa que ali adentra, mas quem dá oxigênio são elas, vocês, nós. Amor que entra e não sai, circula e entra mais. Bem-vindo, vem vindo.

Ramon Sales é um errante humano que tenta colocar em palavras o amor que sente


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