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Ano passado, viajei sozinho por quatro meses e meio. Mochilão nas costas, prancha de surfe debaixo do braço, diário de viagem sempre a postos… Muitos ônibus, barcos, topiques e algumas caronas depois, percorri em 135 dias parte da paisagem litorânea do Uruguai e também da costa brasileira, passando em diversas praias de Montevidéu a Fortaleza.
Não há nenhum mérito “aventureiro” ou de pessoa “desconstruída” nessa escolha. Há, sim, privilégios socioeconômicos em todo “mochileiro”. Quem tem de acordar às cinco da manhã pra pegar uma condução de uma ou duas horas pra chegar ao trabalho sequer ousou pensar um dia nessa possibilidade. Às vezes, não sabe nem o que vai – ou se vai – comer quando chegar à noite em casa. Portanto, não estou aqui esquecendo o lugar de privilégios que todo mochileiro carrega junto com suas trouxas. Mas isso também não me impede de compartilhar o que pude aprender nessa travessia solitária e descompromissada.
Experimentei a solidão de uma forma como nunca antes. Embora more só há muitos anos, estar sozinho e geograficamente distante do torrão natal, da família, dos amigos e amigas é bem distinto. Aprendi que a delícia do estar só, muitas vezes, proporciona uma alegria serena e mansa. Um amigo poeta me ensinou que em todo risco de espinho há possibilidade de flor. Geralmente as pessoas não se dão conta porque, com medo de machucar-se nos espinhos, preferem flores de plástico: se acostumaram à efusividade ruidosa das redes sociais, das conversas por aplicativos de mensagens, das vidas sempre felizes, narcísicas e saudáveis do Instagram.
Aprendi ainda mais a abraçar minha tristeza como um sentimento às vezes necessário. Sentimento que destrói e constrói! Sem chuva interior, como nascerão novas mudas dentro da gente? A chuva lava, renova e prepara o solo para os brotos. É o ciclo da vida. Para que tentar fugir do inevitável? Já repararam no movimento dinâmico das marés? No seu ir e vir ritmado? Em diálogo com a lua, todos os dias as marés escondem e revelam segredos do mar, no seu compasso perpétuo de encher e secar, avançar e recuar, eterno equilíbrio. Já pensaram sobre a resiliência dos ipês? Perdem todas as folhas numa época do ano, mas continuam sempre abertos a receber a visita de um sabiá em seus galhos secos. A sabedoria silenciosa dessas pequenas-grandes coisas existe para nos ensinar.
Nessa travessia, tive muitos encontros com pessoas as mais diversas, de países, estados e culturas diferentes. A vida tem dessas: vai botando em nós pedaços dos outros que rebentam na gente feito frutos maduros como os cajus de setembro no Siará. Se a solidão serena é escolha bonita, a necessidade espiritual do encontro , do ser-estar-com-o-outro é também imprescindível. Se não, para quem falaríamos sobre as águas que escoam no nosso âmago? No entanto, mais do que falar, como aprenderíamos a ouvir? Ouvir palavras e compor silêncios… Amo minha solidão e, ainda que esparramado em mim mesmo, não estou só, pois há mulheres e crianças e homens e bichos e plantas e sóis e luas e mares e estrelas que me povoam. Ser solitário e gregário ao mesmo tempo talvez seja a síntese do viver, ou do aprender-a-viver!
Precisamos cultivar relações arbóreas, conosco mesmos e com os demais: relações como juazeiros bem verdes em meio ao desamor, à fúria e aos desertos existenciais das cidades grandes. Viver não seria exatamente isso: semear florestas de sentidos?
Diferente do que ensejam os versos de Cartola, voltei sem me encontrar. Ora, não me encontrar é condição bonita. Se me encontrasse e deitasse em certezas correria grande risco de realmente perder-me. Não me encontrar é isso: pés que caminham, mãos que conversam, corpo que dança e se move. Não me encontrar é beber as possibilidades do caminho, pois a vida é labirinto de experiências. Não há demérito em perder-se conscientemente: mais importante do que encontrar-se é continuar a busca. A ignorância mora no se achar. Perder-se conscientemente é aprender a passear no corpo escuro da noite sem estrelas, feito peixe do fundo dos mares, feito onça em dia de lua nova. Enxergar no escuro para (nos) ver com mais amplidão. Roberto Freire e Fausto Brito disseram que a escuridão é luz bastante para a experiência revolucionária. Quem sabe, esse é meu palpite, a vida só quer da gente o navegar: com amor, justiça, igualdade. Talvez não haja saída desse labirinto, apenas águas – às vezes calmas, outras, furiosas – à espera de navegantes que se disponham a velejar rumo ao oceano infinito dos sentidos. Apenas o ir-se do viver!
A liberdade é sempre navegação, nunca barco atracado. Navegar nos mares de dentro de si. Escolhe a tua vereda. Planta teu pé de travessia: sê árvore-movimento! Espraia tuas raízes pelos biomas d’alma. Se caminho é porque preciso e tenho coisas pra aprender na caminhada.
Belchior, o trovador cearense, disse que apesar dos desprazeres mundanos não se esqueceu de amar. Para o poeta, amar e mudar as coisas interessa mais. Amemos: uns aos outros, a nós mesmos, às cores da vida… amemos o pássaro em extinção chamado “nóis!”. Tenho sede de vinho, cerveja e amor! Um brinde! Um brinde aos loucos, poetas, marginais, bêbados, mendigos, prostitutas, famintos, pivetes, pedintes, travestis, drogados: anjos e demônios de carne e sonhos! Assim como disse o poeta Whitman, trago vocês comigo, como a todos os outros. Um brinde a todas e todos que ousam soltar raia mesmo em céu com pouco vento! Bebamos da miséria humana para nos embriagarmos de vontade de revolução!
Vou ficando por aqui. Escrever, para mim, é desassossegar minhas certezas, aprender com cada palavra que rabisco. Ahh, tantos livros estão escritos dentro de mim! Sou escriba encharcado de delírio e sonhação! Não só escriba, sou também semente levada pelos ventos. Talvez eu possa germinar aí, no quentim do teu coração. Amor é isso: uma sementinha brotando no peito! Eu queria pedir-lhes uma coisinha só antes de dobrar a esquina e sumir de vista: cantem, dancem, lutem, gozem, sonhem, ousem, delirem… e, no meio de tudo isso, nunca esqueçam de amar!
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* O título “Isso não é Netflix” foi inspirado em uma passagem da música “Eu Não Te Amo”, de Don L e Diomedes Chinaski.
Artigo publicado na Revista Berro – Ano 05 – Edição 06 – Julho 2019 (aqui, versão PDF).