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Buenos Aires, 18 de abril de 2021
Ardilla querido,
Faz tempo, prometo escrever mais e melhor. A abertura foi estranha e agora já estamos um pouco mais fechadas. Tantas coisas aconteceram. Tudo isso é assustador. A partida de Diego foi espetacular e polêmica, como tinha que ser. E, finalmente, a Onda Verde ganhou a batalha, já não era sem tempo — não consigo evitar a litotes. Alguns dias são melhores e sinto que há algo para buscar no horizonte, outros são como os de antes: luto coletivo e a agonia da incerteza.
Ontem, um típico dia de outono querendo ser inverno — porque agora nunca sabemos como e se seguiremos tendo estações —, fui buscar a encomenda. Uma mulher de olhos grandes e verdes, uma saia invernal e um gorro violeta me fez lembrar daquela cena de Shame. Um homem sentado há alguns bancos de distância levava um desses espelhos de corpo inteiro, lembrei-me imediatamente de Uqbar e que os espelhos e cópulas são abomináveis. Foi então que ouvi soar o alerta da estação final, já estava em Retiro. Algumas flores pelo caminho ressaltam o que você chama de “eroticidade botânica”. Por falar nisso, com essa última foto que você enviou até mesmo o descobridor da Enciclopédia poderia reconsiderar seus ideais.
Quando cheguei perguntaram se eu tinha senha, pediram o número de série, tomaram minha temperatura, ofereceram álcool e disseram que eu tinha que esperar na fila dos sem-senha. Uma hora depois, a simpática moça olha o número de série e diz que eu preciso de uma senha, que poderia conseguir online. Eu pergunto se posso fazer ali mesmo, com o celular. Ela diz que não, que as senhas são sempre para muitos dias depois. Eu respiro, lembro da terapia, lembro da personagem de Sara Mesa em Silêncio Administrativo, lembro que os protocolos não são criados pelas pessoas que trabalham no atendimento… sorrio, agradeço e volto pra casa.
Tudo isso para dizer que o Ministério para o Futuro já ficou preso na burocracia que não controlamos. Sigo esperando com paciência e ansiedade. Sigo sendo ansiosa. Desejo que você também. A curiosidade sem a ansiedade não serve para muita coisa.
Espero que você esteja melhor de saúde.
Abraços,
Amanda
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Cartas a Ardilla são textos epistolares de Andreia (que também é Amanda) para Ardilla; dois amigues que re-existem em espaços e tempos diferentes. Os lugares podem ser tempos e os tempos podem ser objetos. Uma é escritora e o outro pode ser qualquer coisa. Ardilla é um muso (às vezes musa, muse) que inspira Andreia e que é amado por Amanda que não é amada por ninguém.
Veja outras Cartas a Ardilla, de Vanessa Dourado.
I: Cuba
II: Pandemia
IV: Buenos Aires