O fuxico



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(Desêin: Ramon Sales)

Por Augusto Azevedo

– Sabe rezar?

Naquelas circunstâncias esse era o único questionamento que o defensor conseguia fazer. Tudo tinha ido longe demais e por mais que aquele renomado advogado não estivesse ali na condição de favor, pois estava sendo pago e assessorado por companheirxs do acusado e ativistas envolvidos no caso, a defesa estava sendo inviabilizada pela aberta perseguição que seu cliente sofria.

– Fica frio, doutor, você já fez tudo que pôde – falou o acusado, estranhamente conformado com a situação, fazendo recomendações referentes às ações em prol da sua liberdade, mas expressou acima de tudo gratidão, pelo que estava sendo feito por ele, e preocupação, pois sabia que não era só a sua vida que tinha se tornado um inferno a partir do seu processo de incriminação e prisão.

Quando um dos melhores advogados criminalistas da região pede para seu cliente rezar, sabendo que uma injusta condenação ocorreria é porque o negócio tinha ficado irreversível. Não era só aquele jovem, estudante, trabalhador, réu primário, arrimo de família, menor de vinte e um anos, que estava sendo condenado, era todo um posicionamento social. A divergência estrutural ligada à permanência ou ao fim do Estado parecia se esmagar naquela situação, onde o Estado existia e estava condenando um inocente, como milhares de inocentes são condenados ao encarceramento, mas naquele caso era um verdadeiro cala-boca, uma demonstração de desproporção de força das instâncias repressivas em detrimento aos movimentos sociais, que além de perdidos na ausência de horizonte político, imerso à dissimulação burocrática, não faziam outra coisa a não ser reagir às iniciativas que conduziam ao seu extermínio. Muita coisa foi feita para a liberdade do rapaz, no entanto até pra libertar um preso político o ego dxs envolvidxs e o interesse institucional fortaleciam a penalização do acusado. Uma sociedade estruturada na bandidagem não pouparia esforço para punir o pior bandido já criado nos últimos anos.

O simplismo impregnado nas leituras políticas não permitia que situações explícitas de perseguições ideológicas fossem apreciadas e respondidas de modo sério, consequente. Na real, o apreço pela vaidade e o compromisso com a própria conta bancária tornavam sádicos eufóricos e progressistas ambiciosos na mesma coisa, independente do ponto de vista, dos mitos coordenativos, da cor da camisa ou da bandeira, ambos defendiam arregaçadamente o mesmo projeto, a mesma sociabilidade.

A personificação da luta projetou a ascensão de muitos oportunistas, desencadeou embates, rachas; fortaleceu monstros, consagrou medíocres, tornou a demagogia categoria do exercício político. As alternativas políticas arrojadas, nutridas pela valorização da autonomia e das diferenças eram convertidas em ameaça terrorista e aquelxs que camuflavam suas identidades eram personificadxs naquilo que há de pior, de mal, de ruim, de ameaçador, de apavorantemente desestabilizador. A negação da identidade e da autoria apresentava caminhos outros de confronto, porém um jovem estava preso, sendo injustamente acusado pela Justiça; esta se desapegava da conhecida morosidade, se mostrando valente para impedir que o meio social por ela representado fosse contaminado com exemplos além do que estava programaticamente estabelecido.

Diferente de outras ocasiões, o Judas escolhido pra ser malhado não teve apenas as vaciladas e insucessos da vida particular expostos, além da execração pública que destinava o sujeito a um isolamento social sem o menor direito de se retratar, se defender, se explicar. Era prevista uma fatal condenação por tentativa de homicídio, respaldada por uma confissão forjada a partir do potencial de uma sala escura, abafada e fedorenta, com incessantes sessões de choques elétricos, coronhadas, golpes de palmatória, pimba de boi, em todas as partes do corpo que a anatomia já pôde especular… e perguntas.

O oficial da polícia militar que sofrera a tentativa de homicídio finalmente conseguia falar; seu maxilar ainda estava inflamado, longe de permitir que ele pronunciasse as palavras com nitidez, porém, ainda com a boca cheia de pinos e com ajuda de familiares e amigos gravou e postou um vídeo na internet, agradecendo as preces de melhoras e os apelos de justiça. Nas próximas eleições, com apoio de três ou quatro comerciantes e alguma consideração do pessoal do batalhão vai dar para ser eleito vereador. Nenhum colega milico, assim como nenhum apresentador de programa policial, estava com a visibilidade do oficial, que antes de poder falar, ainda internado no hospital militar, colaborou de modo veemente para a prisão de seu(s) algoz(es), utilizando caneta esferográfica e bloco de notas.

Tirando algumas expressões de resistência, orgânicas ou não, o modo como a sociedade em geral se relaciona com uma autoridade reflete o atraso da humanidade, que transbordando de vaidade e subserviência louva o que se impõe como superior. Violência policial sempre ocorreu de modo intenso nas grandes cidades do país, o Esquadrão da Morte fez escola, influenciando tudo que era jagunço, meganha matador, miliciano – e de uns tempos pra cá a violência promovida por esses agentes do Estado só se alastrou; mas quando um policial é assassinado, mesmo por um colega de farda, como acontece muitas vezes, o terror é instaurado e a movimentação só se cessará quando o número de mortes for convenientemente suficiente. Inobstante, para pessoas que cobram moral indiferente a qualquer razão, qualquer ato de equilíbrio, sensatez, muito pior do que executar um agente policial era expor sua fragilidade, seu lado indefeso de ser humano.

– Antes tivessem matado! Fazer isso com o major; acabaram com a vida dele – diziam.

O oficial, símbolo da corporação, articulado com o governador, assim como com outros companheiros de oficialato e seus subordinados não envolvidos com maracutaias, tinha sofrido violento atentado na praia da Tabuba (onde habitualmente ia em suas folgas), em um fim de tarde, quando saía do mar após uma sessão de kitesurf. Seus malfeitores utilizaram a pipa do próprio equipamento náutico para encobrir a cabeça do oficial e deixá-lo sem as mínimas condições de reação. Após a surra, bordoadas e areia enfiada em sua garganta e olhos, foi colocado dentro de uma caminhonete 4 x 4, levado a uma rua vazia daquelas bandas e teve dizeres como: porco, gambé, vingança, além de diversas letras “a” dentro de circunferências escritos em seu tórax, abdome, costas; o que apontava que a ação tinha sido premeditada e executada com suma frieza. Tiveram que convocar um perito em grafismos para identificar através de fotos as palavras escritas no corpo do major em letras garrafais. O destemido oficial, mesmo com corpo dominado pelo acocho da pisa, persistia em se contorcer, dificultando a efetuação do que tentou ser escrito em sua própria pele, mas a missão de registrar o horror já tinha sido cumprida e, bem antes da convocação do perito em grafismos, tudo que era grupo de apologia à violência policial do aplicativo de comunicação instantânea mais utilizado já tinha recebido as imagens que insinuavam que as supostas ameaças à honra da Polícia Militar eram sérias. Antes das emissoras de rádio e televisão e jornais denunciarem o crime, tudo que era de rede social já tinha disseminado o episódio e tudo que era de fascista, membros e bajuladores de instâncias de repressão em geral se mostravam dispostos a responder àquele atentado contra a integridade de quem mantinha a ordem social. Enquanto os apresentadores de programas sensacionalistas gozavam de tanta euforia expondo o caso, os setores democráticos da sociedade apresentavam obscuramente sua incapacidade de encarar o embate e o quanto a apatia e o individualismo podem tornar partes distintas absurdamente semelhantes.

O oficial que sofreu a violência, antes de se tornar símbolo da perseguição de jovens pertencentes a coletivos anticapitalistas, era um verdadeiro empecilho nas tramóias e trambiques da própria corporação, pegando no pé de tudo que era policial corrupto, do meganha morta-fome que ameaçava pequenos comerciantes pra conseguir refeições sem pagar aos oficiais agraciados com propinas mensais para o acobertamento de presepadas lucrativas como tráfico de armas e drogas; do samango bombado envolvido com gangueragem ao agente graúdo, cabo eleitoral de parlamentar. Ninguém passava ileso aos olhos do oficial metido e reparador. Então o melhor a ser feito era dar trabalho para esse sujeito tão aficionado por fazer a coisa certa. Entregar a ele xs vagabundxs baderneirxs parecia resolver o problema e ele não se acanhou de aceitar o cargo de desarticulador de movimentos sociais desgarrados de interesses institucionais. De fiscal de comportamento e conduta de PMs virou perseguidor de manifestantes, embora o ódio dos policiais que ele tanto importunou não tivesse evaporado.

As desavenças e trocas de acusações na internet entre o lado de cá e o lado de lá ganharam maior notoriedade, sobretudo para o lado de lá, quando, duma hora para outra, apareceu comentando e respondendo postagens oficialmente a PM, como um inimaginável reacionário, defendendo seu lado sem ameaças, coações ou constrangimentos… visíveis. O candidato ideal para controlar a democracia.

Em um sentido amplo, nós falamos demais. Falou demais o acusado quando, empolgado, não poupou sua disposição crítica reprovando as atitudes de persuasão e banimento exercidas pelo Estado por meio de seus sicários fardados, quando argumentava naquele grupo virtual. Também agiu como um falador incontrolável quem encaminhou registros de imagens daquelas conversas, fornecendo armamento ao inimigo, projetando a si e a outros como alvos. Alguns questionamentos vislumbrando a desmilitarização da polícia, o retardamento no envio de textos na conversa por conta da inoperância da operadora telefônica e uma desgraçada troca de artigos definidos foram suficientes para a incriminação já começar bem sucedida. A mais-que-perfeita reunião de equívocos.

– É preciso acabar com a PM! Morte ao Estado!

Essas expressões usadas por muitos que entendem a condição militarizada da polícia como estímulo e legitimidade de sua truculência e a negação da subserviência ao Estado como lúcido princípio de resistência poderiam ser compreendidas como meros devaneios ou vibrações de internet, talvez se não fossem antecedidas pela despretensiosa indagação de um dos participantes do grupo de discussão:

– E o major lá, fascipopulista, o que a gente faz com ele?

Quem fez a impressão da conversa no aplicativo de comunicação instantânea e a disseminou? O dono do fuxico nunca mantém o domínio de sua obra.

Augusto Azevedo é empreendedor da área de Organizações Sociais, atualmente se encontra envolvido em estudos sobre aproveitamento de recursos hídricos com Peter Brabeck-Letmathe


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