Entrevista Zaccone: “Paz entre nós, guerra aos senhores!” (parte IV)



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(Foto: Joana Borges)

Zaconne fala da Copa do Mundo, condena as violações do evento, mas diz que o problema brasileiro é histórico, não só por conta da competição; ainda dá uma alfinetada nos defensores da bandeira do “não vai ter Copa”; e fala ainda de eleição, sobre suas utopias de uma sociedade sem Estado e sem polícia, sobre manifestações e, no fim, ainda solta um “béééé” pra gente!

Artur Pires: A Copa tá chegando e é um assunto que precisa ser falado aqui nessa entrevista. Aqui em Fortaleza, pelo menos, você vê pessoas que se colocam contra ou a favor da realização da Copa do Mundo. Ninguém fica em cima do muro, tá uma questão maniqueísta mesmo. Diante disso, qual a tua opinião sobre o evento, levando em conta as graves violações aos direitos humanos que a Copa tem trazido pro Brasil? Por exemplo, 250 mil pessoas foram despejadas de suas casas para a Copa acontecer. Comé que tu vê isso?

Zaccone: Eu acho que a Copa trouxe visibilidade a uma coisa que é histórica no Brasil. Aí tem duas questões que são importantes: primeiro que a gente não pode achar que tudo que aconteceu de desmantelamento na saúde, na educação, se deu por conta da Copa do Mundo. Eu acho que é um erro! Não acho que nós podemos depositar toda a construção da nossa crítica ao Estado brasileiro em cima da produção da Copa do Mundo, porque senão a gente vai achar que antes da Copa estava tudo ok ou que depois da Copa vai ficar tudo normal de novo. Não! O que acontece é que a Copa simplesmente deu visibilidade pra questões históricas. E uma das questões históricas mais importantes é justamente como que o Estado brasileiro sempre serviu para fazer o gerenciamento desses negócios, desses interesses privados em benefício de grupos econômicos. Podemos estudar a formação da sociedade brasileira e até a própria estrutura do Estado brasileiro através de ciclos econômicos, o que já revela que o Estado brasileiro sempre contemplou o gerenciamento desses interesses dos negócios.

E hoje chega a esse patamar onde por conta de um momento histórico se contempla o estado de exceção no sentido de se violar direitos e garantias individuais de uma série de questões para beneficiar os negócios do evento. Então, acho que o momento da Copa é o momento para se fazer a crítica desse modelo histórico. Agora, acho que a gente não deve concentrar a nossa crítica, as bandeiras que vão ser levantadas nesse momento… tipo, o “não vai ter Copa” acho que é uma coisa que já tá esvaziada e hoje também não sei se é uma bandeira que eu gostaria de contemplar não. Você pode contemplar a crítica sem achar que o problema estrutural tá na Copa. Agora, você deve aproveitar o momento da Copa pra reforçar a crítica. Agora, dizer que não vai ter Copa? Vamos supor que aparece um maluco aí e diz que não vai ter Copa. Pronto, acabou? Tá todo mundo feliz? Então, esse é o problema!

A questão não é se vai ter Copa ou não vai ter Copa: a questão é que mais uma vez o Estado brasileiro se coloca nessa continuidade histórica de, em detrimento dos interesses da população, contempla os interesses dos negócios e hoje temos um marco ainda pior que é o recrudescimento da violação dos direitos da população. Então, o Estado brasileiro deixa de realizar sua função primordial, que é garantir habitação, saúde, transporte, educação, né, pra garantir esses negócios. Então, acho que aí a Copa entra como uma deixa pra crítica do modelo.

(Nesse momento, rola uma breve pausa entre as perguntas e Zaccone aproveita o silêncio para soltar um: “vamos lá, que essa entrevista tá grande”, lançando mão em seguida de uma risada leve, acompanhada por todos. “São só mais uma ou duas perguntinhas”, diz Artur, fazendo gesto de que já já acaba).

Artur Pires: As eleições estão chegando, pra presidente, governador, deputados… e mais uma vez se exalta aquele discurso de que se você votar bem você faz a diferença prum país melhor, né. O voto é a nossa esperança, né. O voto é a festa de democracia, né (reparem na ironia, por favor! Hehehe). Diversos autores e coletivos nas últimas décadas têm batido nessa tecla de que o sistema político burguês faz o jogo da burguesia, obviamente. Então, por mais que os partidos de esquerda ainda acreditem na luta dentro desse sistema, para eles alcançarem o poder certamente irão abrir mão de suas ideologias e fazer concessões e alianças fisiológicas, né. Comé que tu vê o sistema político brasileiro e mundial? E se há saída pra isso? Ou a saída é negando-o?

“Não acredito que a política se faça só com partidos políticos, né. Política é algo do dia-a-dia, das nossas vidas”

Zaccone: Acho que a gente tem que trabalhar no resgate da política. Não acredito que a política se faça só com partidos políticos, né. A política se faz nas ruas. Através de reivindicações concretas, de categorias de trabalhadores, estudantes… Política é algo do dia-a-dia, das nossas vidas. A gente infelizmente deixou isso por conta dos políticos, porque em algum momento a gente achou que os políticos podiam resolver. Mas ao mesmo tempo a gente não pode achar que essa política do cotidiano é suficiente pra contemplar a resolução das próprias questões do dia-a-dia porque a gente precisa ter na estrutura dos estados um poder que efetive as nossas reivindicações.

Acho que temos que fazer com que os partidos – e isso é uma tradição que a gente não vê hoje no Brasil; em algum momento a gente teve, né, mas depois se perdeu – tenham um link nessas bases políticas, ou seja, temos que fazer um movimento inverso, não é o partido quem vai dizer quem são os representantes do movimento estudantil, não é o partido quem vai dizer o representante do sindicato; é o movimento sindical, é o movimento estudantil que vão escolher livremente seus representantes. Hoje, o que vemos é que querem fazer formação política no partido para que dele saia aqueles que vão operar a política.

Artur Pires: Sendo mais claro, tu acredita numa saída para a humanidade dentro do Estado?

Zaccone: Sinceramente não! Mas também não tenho como te dizer qual é, como é que vai ser o caminho pra gente chegar numa construção (duma nova sociedade). Mas eu trabalho hoje com o conceito de redução de danos. Acho que quando a gente fala em Estado, não estamos falando em uma coisa monolítica. Existem várias formas de Estado desde que ele foi criado. Temos Estado nazista, comunista, socialista, democráticos…

Artur Pires: (intervindo com convicção): Mas todos esses modelos de Estado que tu falou, do nazista ao democrático, todos eles se mostraram autoritários quando o povo reivindicou…

Zaccone: Sim, mas também não podemos botar esse autoritarismo num pacote que iguale todos os autoritarismos. Existem diversas formas de autoritarismo. E a gente tem que sempre buscar com que o Estado minimize esse autoritarismo. O Estado vai ser sempre autoritário? Vai! O Estado vai ser sempre punitivo, controlador? Vai! Mas a gente tem que lutar para que esse Estado seja menos autoritário, menos punitivo. É nessa forma (redução de danos do Estado) que a gente tá tratando a questão do proibicionismo, né. É no sentido de contemplar um Estado que seja menos danoso para o cidadão.

Artur Pires: Mas a sua utopia é uma sociedade sem Estado?

“a utopia é uma sociedade sem Estado, sem polícia! A utopia nos move”

Zaccone: Sim, sim, a utopia é uma sociedade sem Estado, sem polícia! A utopia nos move, mas enquanto não temos uma sociedade sem polícia, temos que trabalhar por uma polícia que seja menos violenta, que esteja mais próxima dos interesses da população. Lógico que não é a boa polícia, porque isso não vai existir, porque a polícia sempre vai contemplar a manutenção de uma ordem que atende aos interesses de determinados grupos. Então, a polícia sempre vai trabalhar no interesse de classe. Mas isso pode existir no marco de uma polícia mais violenta, menos violenta, mais legalista, menos legalista; então, é disso que nós tamos tratando: redução de danos (do Estado).

(Nesse momento, João Ernesto pede gentilmente ao entrevistado pra fazer a última pergunta. Zaccone, sem problemas, faz sinal de positivo com a cabeça)

João Ernesto: A gente foi às ruas durante as manifestações, e viu um certo senso comum falando que os manifestantes estavam ali por falta do que fazer, logo eram vagabundos e mereciam levar bala de borracha e tal, não sei o quê, né. A gente vê muito (desse senso comum) nos comentários de internet e tal, né. Como você vê isso e qual a relevância em ir às ruas?

“Ir às ruas é fundamental, porque a política se faz com a presença do povo”

Zaccone: Ir às ruas é fundamental, porque a política se faz com a presença do povo. Então, evidentemente que esse ir às ruas tem que ser pautado com objetividade, porque senão a gente vai confundir política com revolta. Revolta não é política, embora muitas vezes ela seja necessária. Não sou contra as revoltas, não. Têm momentos em que só nos resta revolta, mas não se pauta a política só por revoltas. Revolta pode ser um momento da política, momento que revela justamente que existe algo que não está bem na política. Hehe! Quando existem as revoltas, é momento de saber que a política não tá sendo bem feita, porque essas pautas não tão sendo ouvidas, trabalhadas pelo poder político, e aí só resta revolta. Então, é importante ir às ruas, as manifestações são importantíssimas, agora a questão toda é que existe um sentimento que eu vejo na população brasileira de um não-pertencimento.

No final das contas, essas manifestações vêm também com uma carga de bronca, de raiva e muitas das vezes setores, principalmente os mais jovens, vêm com muita energia e como contemplar isso, né. Eu fico pensando que um governo popular veria isso com bons olhos. Um governo de base popular já teria chamado esses garotos pra conversar, né. Teria chamado essa garotada, um governo popular já teria sentado com os black blocs, porque na hora que derem voz pra esses garotos vamos descobrir que eles têm um potencial incrível. Eles tão vendo as coisas que nós tamos falando aqui e tão falando: “isso é um absurdo! Não posso ficar quieto!”. Mas, pô, pra isso tem que ter um Estado que queira contemplar uma participação popular, tem que ser um Estado com base popular.

O problema hoje é que nós não tamos vivendo isso há muito tempo no Brasil. Tamos vivendo justamento o contrário, um Estado policial, que quer justamente fazer com que o povo aceite, né, a gestão dos negócios na base do chicote. E aí vai ficar difícil porque a tendência é justamente haver um acirramento nas manifestações e, através de uma cilada, porque joga a polícia e os manifestantes em pólos opostos, né. Se constrói a ideia nos manifestantes de que a polícia é o inimigo e se constrói a ideia nos policiais de que o manifestante é o inimigo – e isso é uma estratégia de poder. Porque enquanto manifestantes e polícia estão se matando embaixo, os negócios estão sendo geridos em cima e tudo caminha. Então, como diria: “paz… (ficou tentando lembrar)

(Joana completou: “entre nós, guerra aos senhores!”)

Zaccone: (balançando a cabeça em sinal positivo pra Joana, como que agradecendo pela lembrança) Guerra aos senhores! A gente precisa estabelecer isso: a paz entre nós, e a guerra aos senhores!

(Finalizando a entrevista, pedimos pra que o entrevistado posasse pruma foto com a primeira edição da Berro na mão. Ele prontamente atendeu e ainda soltou um “bééééé” pra foto, além de um sonoro “berro para o povo!”, levantando o punho fechado de uma das mãos. E num é que na hora da foto a câmera descarregou. E lá vai a Joana tentar ressuscitar a outra máquina pra conseguir a foto. Enquanto isso, João, chêi de graça, diz, em tom de brincadeira:”posso fazer mais uma pergunta?” Todos caíram na gargalhada).

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