Ensaio sobre a política (ou por que não votar)



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(Charge: Latuff)

“Viver é tão gostoso, tão pouco, tão curto, tão inédito. Temos tantas potencialidades ocultas que o certo seria assumirmos tudo o que se manifesta em nós como vida e nos autogerirmos, nos autodeterminarmos, nos autorregularmos, porque somos apenas usuários circunstanciais dessa energia infinita. Nós acabamos, ela não.” (Roberto Freire, Utopia e Paixão – A Política do Cotidiano)

No próximo domingo, a eleição brasileira chega à sua última parada. Depois de meses de intensas campanhas, disputas sectárias e mais de 70 bilhões de reais gastos (daria para seis anos de pagamento do Bolsa Família ou ainda a mais de 1 milhão de moradias pelo programa “Minha Casa Minha Vida”), o eleitor irá às zonas eleitorais confirmar seu voto! Aliás, o que se confirma na urna?

De início, se confirma um sistema político que se apropria de nossos corpos, mentes e sonhos. Se confirma o mecanismo de controle social e contra-revolucionário mais eficaz que a humanidade já inventou; e que, sob o véu da “democracia”, esconde sua face autoritária e controladora. Se confirma o apego às velhas técnicas de representação político-social, como se as formas de práxis e ação históricas fossem imutáveis. Se confirma a negação da autogestão e da autorregulação humanas. Se confirma o sistema totalitário moderno, que não dá margem à vida senão ao movimento inanimado do capital. A ilusão de que o voto, no atual sistema político burguês, muda alguma coisa é a mais bem engendrada mitificação da mentira em toda a História.

Quem joga o jogo do sistema político, sabe onde está se metendo. Aqueles que têm chances reais de assumir o poder, há muito já transigiram a qualquer tendência revolucionária. Corroboro com Bourdieu (O Poder Simbólico) quando ele diz que todos os partidos que chegam ao poder são antes cooptados por ele. Sem exceção. Sempre acabam presos às articulações políticas do Estado. Os que se mantêm ideologicamente puros ainda não alcançaram o poder, mas ao se lançarem, nas eleições, ávidos por cargos legislativos e executivos contribuem decisivamente para que o sistema se afirme como democrático e, assim, consiga encobrir seu totalitarismo. Longe de serem farinhas do mesmo saco, são farinhas de sacos diferentes com a mesma função: legitimar o sistema burguês, ainda que o critiquem (no caso dos partidos à esquerda, leninistas).  “No fundo, é um paradoxo incrível, as próprias esquerdas, em sua grande parte, trouxeram para dentro das organizações de representação popular a forma burguesa baseada no autoritarismo, centralismo e delegação de autoridade” (Roberto Freire, Utopia e Paixão – A Política do Cotidiano).

Esse pluralismo de escolha entre partidos (esquerda x direita) é ilusório e amplia as condições objetivas para o controle total dos corpos e dos povos. “Sob as oposições espetaculares esconde-se a unidade da miséria. A contradição oficial se apresenta como a luta de poderes que se constituíram para a gestão do mesmo sistema socioeconômico e que, na verdade, são partes da unidade real; isso, tanto em escala mundial quanto dentro de cada nação (Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo). Não há leis que abarquem o totalitarismo do sistema político do capital. De acordo com Debord, “o que o público pensa, ou prefere, já não tem importância. É isso que fica escondido pelo espetáculo de tantas sondagens de opinião, de eleições, de reestruturações modernizantes”.

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(Ilustração: Luis Quilles)

A oposição a esse sistema é reduzida à mera discussão e encaminhamento de diretrizes alternativas dentro dele, do status quo. “Não apenas uma forma específica de governo ou direção partidária constitui totalitarismo, mas também um sistema específico de produção e distribuição que bem pode ser compatível com o ‘pluralismo’ de partidos, jornais, ‘poderes contrabalançados’, etc.” (Herbert Marcuse, A Ideologia da Sociedade Industrial – O Homem Unidimensional). Nesse sentido, Eduardo Galeano tem um aforismo certeiro: “A liberdade de eleições permite que você escolha o molho com o qual será devorado”.

O fato é que nos últimos vinte anos, no Brasil, os partidos social-democratas (PSDB e PT) imergiram o país de vez na sociedade do consumo. “Ei, peraí, mas o PT alçou milhões de brasileiros à classe média? E as reformas e interiorização das universidades? E as demais conquistas sociais?” Ora, o capitalismo é muito sagaz: não dá murro em ponta de faca. Tais mudanças, obedecendo à marcha histórica do sistema de produção capitalista, ocorreriam em qualquer governo social-democrata, não apenas no petista. Digo, sem medo, que o PMDB, legenda-mor do fisiologismo, faria governo muito similar. Aliás, este partido é o vice do governo petista. Pois é!

O Estado do Bem-Estar Social, “o país de classe média”, “o mercado de consumo de massa”, que Lula e Dilma tanto cantam loas, é uma necessidade vital da atual fase da sociedade capitalista, que se espraia agora para nações antes periféricas do sistema.  É importante ter cada vez mais consumidores em potencial, uma vez que há uma maior abundância de produtos e serviços que viraram mercadorias. “O Estado do Bem-Estar Social é, com toda a sua racionalidade, um Estado de ausência de liberdade porque a sua administração total é restrição sistemática do tempo livre e da inteligência (consciente e inconsciente) capaz de compreender e aperceber-se das possibilidades de autodeterminação” (Herbert Marcuse, A Ideologia da Sociedade Industrial – O Homem Unidimensional). Para o capital, quanto mais pessoas imersas na sociedade do consumo, tão mais disfarçadas se darão as suas condições de totalitarismo. “A ditadura perfeita terá aparência de democracia: uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravidão onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à escravidão do trabalho” (Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo).

“Ah, mas você fala isso porque nunca passou fome!” Confunde-se o tempo todo liberdade com as migalhas que o poder constituído oferece ao povo. E aí acha-se que não se pode combater a fome, a miséria, a pobreza, as injustiças de outras formas senão legitimando o sistema político. Como se o sistema político tivesse o monopólio e a porção mágica da transformação social! Fomos condicionados, programados mental e corporalmente, a acreditar nessa falsa escolha. Repito: a ilusão de que o voto, no atual sistema político burguês, muda alguma coisa é a mais bem engendrada mitificação da farsa, do embuste em toda a História. “A verdade deixou de existir quase em toda parte, ou ficou reduzida a uma hipótese que nunca poderá ser demonstrada. A mentira sem contestação consumou o desaparecimento da opinião pública” (Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo). Esquece-se que a humanidade é criativa demais para se engessar a uma fórmula imutável de representação social por meio do Estado, dos partidos e dos políticos “profissionais” – que, independente se de direita ou de esquerda, no atual sistema político-eleitoral, ao participarem do jogo, só legitimam a sociedade do controle e da dominação do capital. “Já é tempo de jogar na lata do lixo da História as velhas teses do centralismo democrático, sempre, na prática, muito mais centralistas do que democráticas” (Roberto Freire, Utopia e Paixão – A Política do Cotidiano).

A humanidade é, sim!, capaz de criar novas maneiras de sociabilidade, de participação política,  de convívio, interação, pressão e mobilização sociais. Por que esse apego tão arraigado às velhas ortodoxias teóricas? Por que esse apego à submissão representativa? Por que não caminhamos hoje, agora, para a autorregulação e autogestão dos nossos corpos e vidas? “É uma questão de estratégia de vida: ou eu me autorregulo por inteiro e serei livre, ou sou regulado por alguém e dele serei escravo. Ninguém se faz livre sem desobedecer socialmente. Existem movimentos que pregam a desobediência civil; acreditamos que o protesto político deve ser mais amplo, pregando a desobediência social” (Roberto Freire, Utopia e Paixão – A Política do Cotidiano).

Não há saídas prontas, estáticas, imutáveis. Não há uma resposta mágica para a libertação da humanidade das amarras invisíveis que a prendem. A luta pela liberdade humana é um jogo dinâmico, lúdico, mas para começar a ocorrer têm que ser destruídas as bases que sustentam o poder autoritário: o Estado e tudo o que nele encontra morada, ou seja, suas instituições – diretas ou indiretas – de controle, disciplina e repressão (mídia, escolas, igrejas, penitenciárias, polícia e instâncias políticas), além da família nuclear burguesa. “A esquerda (e a direita também) mistificam o Estado, como se ele fosse dotado de poderes mágicos, ou de uma racionalidade mágica, capaz de administrar as mudanças sociais em qualquer contexto. A experiência socialista foi suficiente para mostrar a natureza autoritária, em si, do Estado, independente do novo modo de produção no qual ele se inseria” (Roberto Freire, Utopia e Paixão – A Política do Cotidiano). Concordo com Rousseau (A Origem da Desigualdade) quando ele diz, noutras palavras, que a violência social nasce com a criação do direito de propriedade e, desde então, é consentida pelo Estado e suas leis.

A grande sacada é que não devemos lutar pelo poder autoritário, mas assumir com prazer a luta pela sua destruição. “Ah, mas o poder sempre vai existir na sociedade, não tem como extingui-lo das relações sociais”. Certamente! As relações de poder sempre ocorrerão, são parte da nossa condição de existência. Mas o poder autoritário não é inerente ao ser humano, ou seja, o poder de dominação (ou tão-somente a tentativa de exercê-lo) sobre o outro, seja numa relação pessoal (amistosa), familiar, profissional ou social não é natural à condição humana. Pelo contrário, a natureza do homem, como bicho que é, é por uma vida associativa, gregária, coletiva. Em qualquer processo natural, social e humano, as lideranças são necessárias e importantes, mas devem ser, ao mesmo tempo, antiautoritárias, espontâneas e descartáveis, surgidas para resolver situações circunstanciais e  depois serem naturalmente descartadas.

Conspiração do controle II
(Ilustração: Ricardo Coimbra)

É preciso, portanto, para agora, superar de uma vez por todas as concepções autoritárias leninistas e reformular os conceitos de partido e de transformação revolucionária. O partido que de fato pretende a revolução não deve buscar o poder, mas se juntar aos movimentos sociais, coletivos, cooperativas, comunas como mais um meio na luta pela suplantação do capitalismo (e não cooptá-los, como ocorre com frequência). Deve, também, abandonar o jogo político tradicional e, sobretudo, desconstruir essa visão messiânica e paternalista de que uma cúpula conduzirá as pessoas rumo à “salvação socialista”. É uma concepção pastoral da política, onde o partido é o bom pastor e a massa são as ovelhas. Essa mesma concepção, de fundo religioso, é que faz com que os partidos de esquerda privem-se, hoje, do exercício pleno da liberdade, legitimando o sistema político pedindo votos. Pensam assim: “sacrifício hoje, paraíso amanhã!” Enfim, o partido de fato “revolucionário” deveria virar uma outra coisa, bem diferente do que simboliza hoje, quando não passa de um falso modelo de revolução. Essa construção histórica de utopia distante, lá no horizonte, inalcançável, é autoritária e despotencializadora. Devemos viver nossas utopias hoje, agora, no cotidiano. Não podemos mais esperar. A hora de viver nossos sonhos é a do presente, não do passado e muito menos do futuro.

Importante se faz desacreditar e negar a busca pelo poder autoritário na sociedade, representado em uma de suas muitas facetas pela eleição no sistema político burguês! Não poderemos nunca transformar a sociedade a partir de práticas, estratégias, valores e ferramentas de controle da sociedade burguesa. A delegação do poder a representantes políticos, via voto, é um dos maiores impedimentos das potencialidades libertárias da humanidade. Porque, ao delegarmos poder a alguém por procuração eleitoral, acontece que, ao invés de exercer o poder por nós, esse representante exercerá o poder sobre nós. “Há, num nível mais profundo, uma visão equivocada do próprio homem, como se, diante de uma planta, diante da vida, nós não confiássemos no potencial da semente e achássemos que a natureza tem defeitos inerentes a ela e que se não ‘cuidarmos’, a vida se desorganiza, se destrói” (Roberto Freire, Utopia e Paixão – A Política do Cotidiano). Abdicamos, assim, da nossa liberdade e da nossa autonomia, nos negamos a nos autogerirmos, ao contrário do que fazem as sementes, as plantas, e outras sociedades animais, que, naturalmente, se auto-organizam. Estamos dizendo, em outras palavras, ao delegar o poder por meio do voto, que preferimos que nos regulem, que nos controlem a nos autorregularmos. Estamos abrindo mão de nós mesmos!

A políticConspiração do controlea não se faz tão-somente nos partidos, ou nas instâncias políticas tradicionais, ou especificamente nas eleições, quando votamos. Fazemos política o tempo todo, com nossa família, com nossos(as) amigos(as) e companheiros(as), no trabalho, na escola, na faculdade, na mesa de bar, nas horas de lazer, enfim, a política permeia nossa existência, ela é inerente à condição humana. A tentativa de “despolitização” do ser, ou seja, de dissociação do ser humano da atividade política, que as ortodoxias teóricas e o sistema político tradicional fazem crer, tem como funções primordiais manter a capa de dominação a que estamos submetidos e atomizar os indivíduos, programando-os para as armadilhas do jogo político: compre, vote, obedeça às leis.

“Ah, você fala tudo isso mas vive contradições do mesmo jeito de quem vota”. Certamente, as contradições são próprias de quem tenta resistir dentro de uma sociedade capitalista. Quem não as vive, já foi cooptado pelo espetáculo. Temos de aprender a beber nestas contradições, sem sentimentos de culpa imobilizantes, mas, mesmo vivendo-as, ressignificando-as e transformando-as em profunda fonte de energia que nos empurre, prazerosamente, na caminhada da sociedade livre que sonhamos. Contudo, dentre as incoerências, legitimar o sistema político – assim como abraçar o consumismo – não é apenas uma contradição de quem luta contra o capitalismo, mas uma ajuda, um estímulo, uma força danada para que ele continue a promover miséria e a controlar nossos corpos, mentes e sonhos. Essa contradição é um fardo muito grande; e esse fardo não posso carregar.

A negação ao sistema político é, sim, um grito de liberdade, como são as negações ao racismo, ao machismo, à homofobia, ao consumismo, ao movimento inanimado do capital e suas aparências. A liberdade é um processo, não uma circunstância que lhe apresentam, não um direito que lhe dão. Ela não é dada por ninguém, é arrancada à força! A liberdade já começa quando sonhamos em ser livres.

Estas reflexões podem ser rotuladas de bonitas, mas política e socialmente inviáveis por aqueles que acham a autoridade, o partido, o Estado, o poder enfim, o mestre da transformação social” (Roberto Freire, Utopia e Paixão – A Política do Cotidiano).


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