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Das bandas que surgiram na cidade de Fortaleza nos anos 90 uma das mais comentadas até os dias de hoje sem dúvida é a Veia Cava. Não conheci tal banda por acaso. Thiago Pereira, meu amigo de infância e hoje meu compadre, tinha ido a uma apresentação dos caras e daí então não falava de outra coisa:
– Tu tem que ver mah, a banda é muito boa, o som é muito irado. Melhor banda da cidade, com certeza.
Fiquei bem curioso, o Thiago assim como eu vinha acompanhando a florescência de bandas de rock da cidade e, também como eu, sempre foi muito exigente, o que ele estava divulgando certamente teria muita qualidade; entretanto o fato de se tratar de uma banda de hardcore e punk rock aumentou de modo significativo o meu interesse. Eram outros tempos, outros acessos, pelo menos pra gente não havia downloads de mp3, as referências que tínhamos dessa linha de som eram os Ramones, Sex Pistols, Clash, no máximo os Rancid, Cólera, Os Replicantes, Ratos e quando eu pedia pra ele fazer uma comparação:
– A guitarra lembra o som dos Kenneds, mas pensando bem eu acho que não tem nada a ver.
Não lembro com exatidão quando foi o primeiro show da Veia Cava que tive a oportunidade de curtir, mas certamente deve ter sido no Casarão Cultural, então sede do PART – Partido da Revolução dos Trabalhadores -, mas lembro da minha alegria em saber que dois dos integrantes da banda eram pessoas próximas e amigas. O vocalista era o Pedro Daniel, vulgo Jerimum, mais conhecido como Giri (Jeri), era um chapa, admirador de cachaçadas na Praça da Gentilândia, Bar do Beto e Calçada da Embrassol na Marechal; entre outras peculiaridades, o Jeri era o único brother da galera que tinha toda a discografia do Black Sabbat; o guitarrista era o Alex Fedox, irmão das épocas em que os bares do centro da cidade viviam lotados de estudantes com camisa da farda e muitas idéias, nos conhecemos no Seriguela Bar, situado na Love Street de Fortaleza (Rua 24 de Maio) em circunstâncias com fim bem turbulento. Constituíam a banda o Junior Animal no baixo e o André Sapo na bateria. Fiquei impressionado com o que presenciei; como se fala, de cara. Entendi tudo o que o Thiago se referia, a banda era muito boa mesmo.
A proposta ia muito além das distorções de guitarra, batidas aceleradas e letras panfletárias, os caras conseguiam trazer inovações pro hardcore, sem as apelações enfadonhas que chapavam as bandinhas pirulito que se reproduziam feito pombos em telhado de pessoas piedosas. Diferente de tudo que eu já tinha ouvido na vida, a Veia Cava possuía um som original, crítico e criativo, com um repertório recheado de músicas que expressavam o cotidiano de uma juventude sem muita perspectiva de vida, mas que viviam sem dar tanta importância assim à caretice enraizada no modo provinciano de lidar com as coisas e com os seres tão típicas da capital do Ceará.
Aquela iniciativa artística não mexeu apenas com o Thiago e comigo, pelo contrário, diversas gerações, inúmeras tribos expressavam seu entusiasmo por aquela banda. Músicas como “Repúdio”, “Poluição Sonora”, “Bola de Papel” demonstravam o quanto era possível e legal fazer uns sons versáteis sem perder o devido peso. Lembro de uma apresentação deles no Centro de Humanidades da UECE, num palco que fica ou ficava à frente do corredor que dava acesso às xerox e às sedes dos centros acadêmicos, a quantidade de pessoas que cantavam as letras chegava a impressionar e a performance daqueles quatro sujeitos em cima do palco correspondia com a agitação da galera.
Num fim de tarde calorento, saindo duma reunião no Casarão Cultural, encontrei o Alex na entrada desse espaço colando alguns cartazes. Pensei que fosse algo referente a algum festival, pois além da Veia Cava o Alex Fedox fazia parte de alguns outros projetos musicais como a banda anarcopunk Alarma, mas quando fui trocar ideia com ele fiquei sabendo que se tratava do cartaz de lançamento do primeiro álbum/demo da banda.
“Cavando a Sepultura do Sistema” foi o título dado ao primeiro trabalho de estúdio dos “meninos”, com produção do Jolson Ximenes e do próprio Alex, com a ilustração da capa do mais que criativo K-lango; o disco trazia além algumas músicas gravadas com uma regular qualidade como: “Verdade”, “Auto-Gestão Já”, “Lutar e Falsa descoberta”, além da clássica “Tacando Fogo”, músicas gravadas com recursos limitados, como “Punk”, “Bad Boy” entre outras; embora a qualidade da gravação dessas músicas não fosse tão boa quanto às mencionadas anteriormente, a intimidade do público com esses sons e o empenho da banda em valorizá-las em suas apresentações faziam com que a baixa sonoridade e definição dos instrumentos se colocassem apenas como detalhes. Outro dado curioso desse disco é que além das músicas a demo trazia consigo cerca de quatro poemas recitados pelo então baixista da banda Junior Animal, o que alimentava o aspecto alternativo e inovador dessa produção. Discão, eu pessoalmente vivo perturbando o Alex para reunir a turma e remasterizar esse álbum tão bom, mas que hoje em dia é uma raridade, pois as gravações postadas no myspace – ótimas para não deixar que a banda desapareça no tempo – não formam o set original do disco.
O tempo passou e os encontros da vida propiciaram que o Thiago Pereira, um dos maiores fãs da banda, viesse a ser baixista da Veia Cava. Nessa fase podemos identificar um som mais pesado, uma proposta mais crua do que a da antiga formação, na bateria rolava uma espécie de revezamento entre o batera original, André Sapo, o Léo, ótimo baterista, que tocava em bandas como a célebre Diagnose, além do K-lango, de quem sou suspeito pra falar, pois além de ser seu amigo sou um profundo admirador de suas elaborações artísticas, seja na música, seja nas artes visuais, enfim, o cara é um exemplo de dedicação à arte alternativa e uma grande figura da cena punk do país. Por volta do ano de 2003, os caras que faziam parte dessa segunda formação se reuniram para a produção do segundo registro da banda, que devido à boêmia e outros processos de sinergia não consigo lembrar o título – acabei de ligar para o Thiago, mas ele também não lembra – expondo uns sons distintos dos primeiros conhecidos pela galera. Essa formação perdurou por um tempo, só que não obteve a visibilidade da formação clássica, embora muitas pessoas prefiram essa segunda fase da banda.
É incrível, toda vida que encontro pessoas dos tempos do Casarão Cultural, Cidadão do Mundo e outros espaços alternativos da cidade que abriram suas portas para que bandas de punk rock e hardcore fossem vistas a Veia Cava se destaca como uma das bandas que mais deixam saudade. Acredito que esse seja um triunfo da arte e em especial de quem se dispõe a concentrar as produções artísticas em princípios que almejem a independência e a liberdade de criação acima de tudo. A Veia Cava faz falta, mas como costumo falar: a Veia Cava não acabou, os caras só estão dando um tempo. Eu pessoalmente não vejo a hora de presenciar uma nova apresentação dessa banda.
Mais sobre a banda: https://myspace.com/bandaveiacava
Augusto Azevedo é tesoureiro do sindicato dos black blocs e perito em desarmamento de balengotengo