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tenho uma escova de cerdas macias, como nuvem, como pixaim. agradáveis ao toque como meu corpo quando dói e cai a água fria.
a escova guarda muito dos meus fios. toda sexta-feira junto-os todos, fazendo um grande cocoruto de pêlo algodoado.
sexta-feira é também o dia que o pai chega de viagem. é caminhoneiro e nunca escova os cabelos. gosta de se dizer o homem da família, ri bem alto demarcando sua existência na casa, em nossas vidas.
sento na beira da cama. o quarto não tem porta. da poltrona da sala me olha como me olham seus amigos quando aparecem para beber, como me olha o professor e o médico. o mecânico da bicicletaria e o padeiro.
aperto as pernas bem firmes e tento manter no rosto a suavidade de cada escovada. penteio até que o braço doa, até que o couro da cabeça doa.
uma escova cheia dos meus pêlos.
quando já é tarde da noite e a mãe deixou toda a louça limpa, chão limpo, carne curtindo nas bacias com banha, alho e sal, do jeito que o pai gosta, viro para dar boa noite, mãe.
o pai ronca alto e um cheiro acre de álcool envolve a asa pequena.
agora todos já dormem.
retiro um a um meus pêlos da escova, enrolo meu cocoruto. o maior que já fiz. o pai sempre diz que uma mulher com pêlos é uma mulher nojenta.
pego a lâmpada que escondi entre as calcinhas e a esmigalho firmemente, enquanto ouço na cabeça choros abafados de mamãe, o som grave do punho do pai em suas costas e o engasgo profundo e seco.
esmigalho até que seja puro pó em minhas mãos que sangram, puríssimas.
arranco a carne da bacia e estraçalho um pedaço, recheando-a com meu cocoruto de pêlos e vidro moído.
recito baixinho as palavras mágicas de mamãe: só teremos paz quando ele morrer.
fecho a carne, como costurando a minha.
beijo o pedaço ensanguentado.
eu sou judas.
salomé.
me beija.
me come, papai.
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Nina Rizzi – Historiadora, editora, poeta e tradutora brasileira – ninarizzi@gmail.com