Sobre o Belo: o poder da arte em momentos de crise



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(Altar da Paz – Acrílica sobre Tela – 146 x 235, Rachel Roscoe)

A importância da Beleza: Qual a relação entre um sentido de liberdade e a beleza?

Em tempos de isolamento, com alguma liberdade (no sentido positivo) para pensar, talvez possamos buscar um fundamento para a existência humana que só pode ser confirmado pela experiência, mesmo sendo ele universal.
A ideia de que estamos passando por um evento de proporções catastróficas, em escala mundial, em certo sentido nos une, ou, pelo menos, deveria nos unir. O Coronavírus nos coloca de frente com a questão da saúde pública, mas também nos desafia em vários outros campos, como o da desigualdade social, da pobreza, do egoísmo sem limites. Nos impele a pensar sobre o sentido da vida, sobre se estamos certos em viver buscando riqueza, poder, fama. Nos convida a pensar o que é ser feliz, o que é ser livre e em qual tipo de cultura deveríamos estar vivendo.

Hoje o medo de morrer nos une, pois compartilhamos o mesmo sentimento. Existe um outro sentimento que também no une: o da liberdade. Liberdade que aqui destacamos não está relacionada àquelas indicadas pelo filósofo Isaiah Berlin (1909 – 1997) em seu famoso artigo Dois conceitos de Liberdade: negativa e positiva. O conceito de liberdade aqui é um em que se sente. Mas existe ainda um outro sentimento que compartilhamos de forma necessária: o sentimento do Belo. Quando estamos tendo uma experiência prazerosa e não sabemos explicar exatamente por que sentimos o que sentimos, normalmente expressamos, simultaneamente, a palavra Beleza. Ao mesmo tempo, desejamos convidar alguém a compartilhar tal prazer, ou seja, neste momento somos o oposto de egoístas e estamos sendo felizes.

Ser Feliz é, antes de tudo, se sentir Livre

Para o filósofo e médico Schiller (1759 – 1805), o prazer que sentimos com a arte, especialmente a Bela Arte, é um sentimento de liberdade. Isto significa que, quando ouvimos uma música que nos emociona, mas não sabemos exatamente por que sentimos o que estamos sentindo, estamos, na verdade, nos sentindo livres. O mesmo ocorre com poemas, pinturas, esculturas, filmes, no teatro, nas Artes em geral. Mas poderíamos perguntar: este sentimento de liberdade só pode ser sentido com a Bela Arte?

Segundo o próprio Schiller, este prazer com o Belo, que é o prazer de se sentir livre, parte ou tem origem no próprio sujeito, ou seja, a origem do prazer está no sujeito e não no objeto. O objeto possui características que fazem dele uma espécie de espelho para um desejo que nos é fundante. Para Schiller, o maior desejo do humano é se sentir livre.

(Ipê Amarelo – acrílica sobre tela – 120 x 100, Rachel Roscoe)

O Universo, incluindo nós humanos como parte da totalidade – somos determinados, e caminhamos, de forma necessária, para sermos livres. Natural é que podemos nos sentir livres ou felizes de outras maneiras, por exemplo, quando somos elogiados, quando nos saímos bem em uma prova, quando compramos um carro novo. Mas Schiller nos chama a atenção para uma felicidade que possui um caráter antropológico e psicológico. Se concordarmos que quando estamos sentindo um prazer com o Belo na Arte, nossa razão não quer dominar, nem mesmo nossa sensibilidade egoísta (instinto de sobrevivência) se manifesta, neste momento, onde estas forças se igualam ou são nulas, podemos afirmar que ocorre uma harmonia entre Razão e Sensibilidade.

Este é o momento que somos livres das determinações da razão ou da sensibilidade egoísta. Mas uma liberdade absoluta não existe, pois ela não é possível em um universo determinado. O que surge, portanto, é a realização do nosso mais profundo desejo, o de voltarmos a ser livres como éramos quando ainda estávamos em formação. Éramos já um corpo, mas sem razão ou sensibilidade, daí o caráter antropológico. Esta experiência inicial nos marca como um trauma, só que no sentido positivo do termo, sendo este o seu caráter psicológico. Esta marca original, da experiência de liberdade não sentida, fica como um vazio que não pode ser saciado, mas o identificamos na relação com a Arte e, com ela, preenchemos momentaneamente este vazio.

Desejamos profundamente nos sentir livres, mas simplesmente não sabemos disso, pois nos é inconsciente. E como somos, na verdade, a origem do prazer que sentimos, ao externarmos para o objeto da arte nosso mais profundo desejo, o de sermos livres, devemos libertar a tudo e a todos. Se existe uma relação entre Liberdade e ações morais, então deve ser esta: libertar a todos.

O que Schiller nos indica é que a Bela Arte nos mostra que somos assim constituídos. Somos seres de razão e sensibilidade, mas somos harmônicos, íntegros, completos, quando temos este prazer de nos sentir livres, mesmo não sendo. Saímos sim dos museus e teatros mudados, pois encontramos ali quem verdadeiramente somos. A arte deve nos mostrar este caminho para um prazer especial e para a felicidade.

Assim, o sentido da nossa vida seria o de sermos livres, e para isto, precisamos nos sentir livres na caminhada. Então, devemos viver em uma cultura que tenha esta interpretação de liberdade como fundamento.

Beleza = Liberdade

A experiência estética do Belo nos lembra que já fomos livres da Selvageria da sensibilidade egoísta e da Barbárie da Razão.

(Lavandas – acrílica sobre Tela – 100 x 130, Rachel Roscoe)

Existe uma relação entre a Beleza, a liberdade e a Moral. Precisamos nos envolver com estes 3 conceitos, se quisermos buscar um sentido especial de ser feliz.

Nosso destino é ser livre, mas ele é impossível. Mas podemos, no entanto, nos sentir livres, que é, na verdade, o que realmente importa

A relação entre a Beleza e a Moral

Se o prazer do Belo é acompanhado de um desejo de compartilhar esse prazer, e se o Belo é um sentido de liberdade, não seria este desejo de compartilhamento de um prazer desinteressado o fundamento da moral?

Quando temos nossa Razão e Sensibilidade desenvolvidas, aumentamos nossas chances de momentaneamente atingirmos nosso objetivo de vida, o de nos sentirmos livres. Deveríamos viver em uma cultura, ou sociedade, que nos facilitasse ter estes momentos.

(Luar de Outono – acrílica sobre Tela – 100 x 120, Rachel Roscoe)

Mas não basta ter Razão e Sensibilidade desenvolvidas, é preciso uma relação com objetos, natureza ou pessoas. Para sentirmos este prazer especial de ser livre, agimos, de forma consciente ou não, para libertar. Quando libertamos é que podemos nos sentir livres.

A Arte nos ajuda a identificar o que temos de mais profundo e nobre: o desejo de nos sentir livres. O objeto da Arte parece vivo, pois somos nós que transferimos nosso desejo de liberdade para ele, que por sua vez, deve possuir características que refletem este nosso desejo como se fosse dele. O mesmo ocorre com a natureza, e o mesmo deve ocorrer em nossas relações humanas. Libertamos as outras pessoas pois temos prazer com isso. Mas libertar os outros por prazer é moral?

(Bougainvillea – acrílica sobre Tela – 140 x 190, Rachel Roscoe)

É muito difícil ter prazer estético quando estamos com alguma dor, com medo de ficar doentes, com medo de perder o emprego, quando estamos preocupados, quando estamos sempre pensando em maneiras de ganhar dinheiro, quando estamos muito determinados em ter os outros prazeres, que não aquele de se sentir livre. Difícil ter prazer com fome, como também quando somos injustiçados. Precisamos estar livres, agora no sentido negativo de liberdade (conforme Isaiah Berlin), dessas determinações que nos impedem de ter o prazer especial do Belo ou de nos sentir livres.

Com nossa Razão e Sensibilidade Fina sendo desenvolvidas, como desejava Schiller, agimos mais facilmente de forma necessária para libertar a tudo, todo o tempo. Devemos agir para libertar os outros de tudo aquilo que os impede de ter prazer estético, pois assim, teremos nós mesmos este prazer. Agir moralmente é, portanto, agir para libertar os outros para que tenham o prazer estético de se sentir livres. Assim, poderemos nos sentir também livres.

Como desenvolver a sensibilidade fina e a razão

Para Schiller é preciso desenvolver ambas ao máximo para termos prazer e elevarmos a cultura

(Ipês Vermelhos – acrílica sobre tela – 140 x 190, Rachel Roscoe)

Somos ótimos quando o assunto é o desenvolvimento da Razão (que pode nos levar à Bárbarie!), isto desde os tempos de Sócrates. Mas esta abordagem ganhou impulso com o Iluminismo. Devemos ser, ao mesmo tempo, gratos e questionadores desse primórdio da Razão. Devemos tanto às ciências e precisamos continuar nos desenvolvendo em todos os campos científicos (como seria bom se já tivéssemos a cura para o Covid-19). Mas não podemos abrir mão, jamais, de desenvolvermos também essa sensibilidade fina que Schiller chamou a atenção no final do séc. XVIII.

As ciências nos ajudam a desenvolver a razão, assim como a filosofia. As artes nos ajudam a desenvolver a sensibilidade fina, assim como a filosofia. A Filosofia, por mais estranho que possa parecer, pode nos ajudar a desenvolver Razão e Sensibilidade. Para tentarmos entender isto, talvez fosse preciso lermos Schiller e seu amigo e filósofo Fichte (1762 – 1814).

(Girassóis – acrílica sobre Tela – 100 x 100 – Rachel Roscoe)

Ah, e quando falamos em ciência, naturalmente estamos incluindo tudo relacionado a tecnologia. Nas escolas então, se o argumento aqui apresentado faz algum sentido, deveríamos aprender as ciências, as línguas, as tecnologias, a filosofia e as artes. Estas últimas mais voltadas, mas não exclusivamente, para o sentir, para a liberdade, para o sentimento do Belo e para o prazer estético.

Schiller indicou que levaríamos 100 anos para percebermos uma mudança na cultura. Quem sabe, podemos acelerar um pouco e ver nossos filhos se sentindo verdadeiramente livres.

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Estes ensaios fazem parte de um projeto editorial intitulado Sobre o Belo: o poder da arte em momentos de crise. Os textos de Edson Siquara estão permeados de obras da artista plástica mineira Rachel Roscoe, que desenvolveu uma técnica de pintura chamada “Circunscritos”, uma junção de círculos pintados à mão livre.


5 Replies to “Sobre o Belo: o poder da arte em momentos de crise”

  1. Concordo. Pelo texto, parece que a Beleza nos conduz à virtude. Mas será isso mesmo? Quem sabe outro pensador poderia trazer um contraponto, uma resposta à sua pergunta ou uma outra interpretação sobre a Beleza.

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