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Ramon Sales
Mudei-me. As lembranças dela encrustaram nas paredes de mim. Impossibilitado de separá-las e encaixotá-las, trancafiei tudo junto e criei um novo eu. Moldei-o com poeira estelar, batizei-o com lágrimas e dei-lhe o que restou de mim para vestir. Penteei-lhe os cabelos, beijei-lhe a testa e disse-lhe que não chorasse de amores. Mandei-o seguir com minha vida, despido de mim e vestido de dor. Não ouso dizer que lhe dei alma. Essa amiga velha já nem mais visito desde que bateu a porta na minha cara pra virar monstro, contorcida de angústia. De vez em quando irrompe em soluços.
O novo eu conta os dias pra cama de casal chegar. Não terá mais que dormir de rede com a culpa, que herdou de mim. Às vezes se queixa ele de uns quantos absurdos. Diz que o vestido tira o apetite, que faz a mente corroer. Diz que a companheira de sono o acorda todos os dias ao alvorecer e só o deixa dormir de novo depois de espetar-lhe o coração. Bobagens. O que importa é que ele siga existindo enquanto eu transformo o preto e branco do mundo no colorido das lembranças, trancado com elas, conformado à minha nova condição de transeunte de memórias.
Da nova morada que fiz o lembrar, bem-vindo só o desespero, que hora dessas saiu e deixou a porta aberta pro delírio. Deste ganhei de presente uma caixa cheia de memórias que não aconteceram, roubadas do sonhar. Nelas somos, eu e ela, um só, até o fim.
Acordo. Tateio ao redor, relutante em abrir os olhos e encarar os tons de cinza. Sinto a cratera da ausência com as mãos. Faço dos cílios fresta e espreito a vida. Detenho-me numa caixa familiar à mesa de cabeceira, sem entender o limite entre o sonho e a realidade. Tomo-a em minhas mãos com medo do que vou ver. Em vez das imagens de outrora, porém, um sussurro do próprio imperador dos sonhos. Falou na língua onírica a resposta de tudo. Ah, se eu tivesse entendido… Continuei no limbo da incerteza, seguro, apenas, de que a vida seria muito melhor ao lado dela.
Ramon Sales é um errante humano que tenta colocar em palavras o amor que sente