Silas Malafaia e a derrota pública de um cristianismo: notas*



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Romero Venâncio

O Brasil vive um fenômeno impressionante há mais de três décadas: o crescimento de grupos evangélicos pentecostais ou “neopentecostais” (como querem alguns sociólogos da religião). Crescimento este que não só é no numero de fieis, mas é também no crescimento patrimonial (rádios, TVs, templos) e no âmbito da política partidária oficial. O fenômeno midiático cresce a olhos vistos. A TV Record pertence toda à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e tem a figura de Edir Macedo como mentor e dono das organizações televisivas e radiofônicas. Em grande parte cresceram à sombra de uma ditadura militar (os principais líderes pentecostais sempre mantiveram boas relações e apoio explícito aos militares golpistas) e continuaram a crescer nos governos democráticos. Mas o momento mais visível e significativo do crescimento pentecostal se deu na grande onda neoliberal dos anos 90 no Brasil e em boa parte da América Latina. Significativo em quê? Na derrota das políticas de esquerda, na privatização acelerada dos bens públicos e na decadência dos serviços públicos, atingindo em cheio as camadas populares das periferias.

O discurso da “Teologia da Prosperidade” pentecostal veio como uma luva na mão das aspirações dos mais pobres do Brasil. Ter um emprego, ter carro, ter casa, ter empresas, ter família estruturada, ter ascensão social, ter, ter, ter… Virou o mantra das pregações, “milagres”, louvores, delírios, e tudo bem orquestrado num discurso ideológico forte e num “trabalho de base” invejável a qualquer partido de esquerda ou teologia da libertação. Eles (os pentecostais) subiram os morros, foram às favelas, entraram mata adentro na Amazônia, foram aos mais desertos lugares do Nordeste e avançaram em parte na região Sul. Mapear todo o Brasil era um trabalho sistemático e diuturno da pregação e prática pentecostal. Nomes como os de Silas Malafaia, Edir Macedo, R. R. Soares, Apóstolo Valdemiro, etc. tornaram-se conhecidos da mídia (até por estarem nela diariamente).

O jogo teológico-político dos pentecostais se deu numa arena nova para as religiões brasileiras: a televisão. Antes da TV, o rádio foi momento de crescimento (ainda tímido). Lembremo-nos de maneira superficial deste percurso dos pentecostais nos meios de comunicação no Brasil dos anos 50 para cá. Um país ainda rural e muito influenciado pelo rádio viu na “Igreja Deus é Amor” do missionário David Mirada (hoje, figura esquecida nos meios pentecostais) um dos primeiros pentecostais a usar sistematicamente o rádio para conquistar fiéis. David Miranda fazia espetáculos no rádio: curava, exortava, tirava demônios e pedia dinheiro (óbvio e necessário à causa). Cresceu ele, seu patrimônio e sua igreja durante décadas de ditadura militar.

Interessava aos militares combater a esquerda católica da Teologia da Libertação e a “Igreja Deus é amor” e a “Igreja Assembleia de Deus” faziam bem este serviço e com algum apoio norte-americano, pra variar… A metodologia de trabalho desses religiosos pentecostais era sempre a mesma, apesar das divergências de ordem financeira entre os pastores e missionários: trabalhar nas grandes periferias brasileiras das grandes cidades e ir se espalhando para os interiores mais pobres… O negócio (literalmente falando) estava em atingir os pobres (supostamente abandonados espiritualmente pela Igreja Católica). Foi uma grande jogada e que deu certo. Basta ver o peso eleitoral e político que têm hoje nas eleições presidenciais, inclusive.

Junto com todo o trabalho com os mais pobres e no uso da mídia, os pentecostais desenvolveram toda uma “teologia bíblica” marcada por acentuado moralismo: virgindade feminina no casamento, relações monogâmicas, vestimentas fechadas e soturnas, contra qualquer forma de homossexualidade, campanhas em defesa da família e contra as conquistas feministas, dos negros e de homossexuais nas últimas décadas no Brasil e no mundo e azeitada por um anticomunismo visceral, onde viram na queda do muro de Berlim o seu triunfo (jamais imaginariam que o muro caiu para o lado errado e a conta começa a ser cobrada nesses dias. Mas isto é outra história…). A literatura sociológica e política sobre estes temas crescem a cada dia e sobre a posição dos pentecostais começa a se tornar importante num país que não tem tradição de usar suas pesquisas sociais para se entender melhor e focar em políticas públicas. O crescimento pentecostal e seu poder de fogo nas mídias levaram alguns seguimentos políticos a acordarem do sono dogmático em entender o fenômeno religioso como relevante no Brasil.

Na última década vem se configurando um conflito explícito entre pentecostais e conservadores de um lado e movimentos feministas, homossexuais e transsexuais do outro. Confronto em todos os níveis. O mais recente está sendo protagonizado pelo pastor Silas Malafaia, que pertence a um ramo dissidente da Assembleia de Deus, em afirmações ofensivas em redes sócias e na televisão contra os homossexuais e seus direitos… Primeiro, ele fez a sua candidata a presidente da república Marina Silva (PSB) recuar na sua posição sobre união civil de homossexuais e em projetos que punem legalmente a homofobia (visível no Brasil atual e nos assassinatos de homossexuais), gerando um constrangimento nas falas da candidata e reação forte em organizações de gays. Em seguida, o referido pastor usa as redes sociais para fazer sua “peculiar exegese bíblica” para afirmar que o texto bíblico condena homossexuais e lhes tirando o direito de ser cristão e homossexual. Já faz tempo que Malafaia colhe duas ou três afirmações bíblicas nesse tom de exclusão de pessoas homoafetivas e faz disso uma bandeira evangélica contra todas as conquistas do movimento gay desde os anos 70. A figura de Jesus acaba sendo arrolada como testemunha dos delírios do pastor e de suas posições ideológicas à sombra dos poderes políticos.

Essa “guerra santa” promovida pelo pastor tem claros interesses políticos e econômicos. Importantes para aumentar seu patrimônio e sua influência política amealhando benefícios para suas igrejas. Quer passar a imagem de que a luta é apenas teológica e se fazer de vítima nesse jogo perverso, mas não é. Está protagonizando uma derrota pública de um cristianismo onde a letra do Evangelho é mais importante do que a práxis de Jesus de Nazaré. Malafaia e sua cruzada ideológica é perfeitamente explicada por uma frase de Karl Marx em pleno século XIX: “A crítica do céu transforma-se em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política”.

Romero Venâncio é professor de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS)

* O conteúdo foi originalmente publicado na Revista Rever


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