Siba: “A música, dança e a poesia podem nortear um modo de viver distinto desse aí (da grana como a coisa central)”



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“Pelo simples fato de existir, o maracatu, o candomblé, já é resistência” (Fotos: Dragão do Mar)

 

Um brincante do verso, Sérgio Roberto Veloso de Oliveira, mais conhecido como Siba, acumula mais de vinte anos de carreira. Teve uma adolescência roqueira e começou sua vida artística em 1992, no grupo musical pernambucano Mestre Ambrósio, tocando rabeca, guitarra, cantando e compondo. Quando ainda estava no grupo participou, em 1997, da trilha sonora do premiado filme pernambucano Baile Perfumado. Filho do manguebit e de toda a atmosfera que pairava nas ruas do Recife nos anos 90, Siba reapropriou em seu trabalho elementos da cultura popular e teve uma forte influência do maracatu de baque solto. Depois de sair do Mestre Ambrósio criou o projeto “Siba e a Fuloresta”, em 2002, fruto da experiência com os mestres de maracatu de Nazaré da Mata. Lançou, em 2010, o disco Avante, produzido pelo guitarrista e compositor cearense Fernando Catatau.

A Berro o entrevistou na oportunidade do show de lançamento do seu recente disco De Baile Solto em Fortaleza, no último mês de julho. Siba aparece neste novo trabalho com um discurso mais político e atento às ameaças que a cultura popular vem sofrendo frente ao mundo do consumo. Na entrevista ele falou sobre sua experiência com os mestres de cultura popular, outros modos de vida e sobre sonhar.

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Siba, esse negócio da poesia na tua música é muito forte. Quando foi que começou essa relação com as palavras?

Siba: Essa coisa de como começou é muito difícil, porque você nunca lembra exatamente. Porque eu e minha família toda somos do agreste, do semiárido do Nordeste, que é uma região cultural que é uma coisa só, do Piauí, Ceará até o norte da Bahia. É uma região que tem uma poética própria e eu convivi desde pequeno, mas nada intensivo, em casa não tinha isso, não sou filho de cantador, nada disso. Tinha isso no ar e tal e meu pai gostava bastante, mas depois vai ficando uma coisa mais presente.

Onde você nasceu?

Nasci no Recife, mas minha família toda é do agreste, de Garanhuns, Caruaru, Lajedo. Tem uma experiência de poesia indireta, não tinha em casa, mas tinha indireta, no ambiente, de alguma forma.

Mas quando você começou a compor?

Com o Mestre Ambrósio, já envolvido com maracatu, cavalo marinho.

Quando você foi participar do Mestre Ambrósio, já conhecia o maracatu de baque solto?

Já, a primeira vivência foi por ser de Recife, a cidade tinha um ambiente, no Natal, no Carnaval, no São João. Mas acho que tem muito a ver pra mim com o momento de escolher, de arriscar, de fazer a escolha da opção de risco, ser artista e tal. Quando eu fiz essa opção, de dezenove pra vinte anos, eu entendi que precisava pensar sobre a opção que tava fazendo, tentar entender minha posição no tempo e no espaço, do lugar de onde eu vinha. Aí naturalmente percebi que tava num lugar que eu partilhava dessa referência. Cresci ali, era um moleque do rock, mas, ao mesmo tempo, antes disso tinha uma referência muito outra. Então eu vim buscar essa poesia e era uma coisa que em casa não se falava sobre isso, era uma coisa que, como eu falei, não era intensiva, mas, ao mesmo tempo, tinha uma coisa de imaginar o cantador como uma figura transcendental, idolatrada. Acho que vem muito daí indiretamente de família, indiretamente mesmo, mas depois eu busquei. O maracatu de baque solto é a grande referência pra mim porque remete a inversão de valores da música, tinha tudo que o rock tem de outro jeito.

O discurso do De Baile Solto é permeado por essa coisa da resistência. Mesmo com as movimentações da cidade, da gentrificação, tem a questão dos focos de resistência. O maracatu de baque solto seria isso? Você acha que a arte que eles fazem, essa cultura popular que você até usou o termo no show de tecnologias sociais seria um ato político?

Cara, sempre é, porque você imagina que esses modos de fazer, eles vem sempre do negro e do índio, em raríssimas exceções. Então o simples fato de existir já é uma posição de confronto, de questionamento. Por mais que toda a fabulação seja complacente, de diminuição, aquela coisa que eu falei, o folclore. O senso comum é tão pesado, mas o trabalho da mídia, dos discursos que falam que o lugar dessas coisas é muito inferior. Porque hoje é legal, é tranquilo, mas nos anos 30 a polícia chegava e mandava parar, quebrava, prendia, matava. E hoje volta a ter um movimento nesse sentido, eu acho. Acho que a gente volta a ter um movimento muito preocupante realmente de ataque à existência dessas coisas. Pelo simples fato de existir, o maracatu, o candomblé, isso e aquilo outro já é resistência. Agora a possibilidade de um discurso mais afirmativo, mais direto, questionador, aí o buraco é mais embaixo. Porque as pessoas nessas condições sabem o que enfrentam, a pouca expectativa, por isso que têm as suas estratégias pra sobreviver. Mas o simples fato de existir o maracatu de baque solto é…

Um ato político.

Com certeza.

Tem um professor aqui em Fortaleza, o Gilmar de Carvalho (jornalista, escritor, professor universitário de comunicação e pesquisador da cultura popular), que fala que a cultura popular não precisa ser resgatada, porque ela não está se afogando. Essa afirmação da cultura popular, ela existindo, já faz ecoar um discurso político, que não está presente na letra, mas sim na própria existência da arte?

É o que eu falei, eu faço o meu discurso como um indivíduo, como uma pessoa que tem relação com essa coisa que vem também dela, mas que tem a possibilidade de agir e, mais do que isso, de falar pra muita gente. Mas eu não represento o maracatu, tô falando por mim, pela minha relação com essa coisa toda e como uma questão de pensamento, como uma afirmação de dignidade pessoal. Não seria digno da minha parte vir de onde eu vim, ter tido essa experiência com o maracatu e ele ser tão central no meu trabalho e eu ficar calado frente ao que aconteceu recentemente e ao que acontece ainda. Seria indigno, vergonhoso. Então pra mim tem essa questão pessoal. Eu tenho que me colocar em relação a isso.

É uma motivação…

Não é uma motivação, é uma questão de dignidade. Não caberia a mim não falar, não me expor em relação a isso. Quem sente de fato não sou eu, claro que eu sinto também, mas eu não tô lá, eu moro em São Paulo. Tenho a minha banda, toco, ganho a minha grana, tenho a minha vida classe média e tudo mais, entendeu? Mas quem tá em Nazaré da Mata, Goiana, Condado tem somente o maracatu como modo de vida e de uma hora pra outra alguém lá no escritório diz que a polícia manda parar duas da manhã. Isso é um ataque central à dignidade de uma pessoa, lá. Cada um faz o que quer, eu como tive o privilégio de ter tido acesso a esse conhecimento e isso ter me formado como pessoa, não caberia a mim não me colocar. Mas eu não represento o maracatu, eu represento a mim mesmo.

Mas o que é que tu pode falar que aprendeu no tempo lá da Fuloresta que tu foi morar em Nazaré da Mata, ficar mais perto deles? Uma principal coisa que você tirou disso tudo, dessa vivência, se pudesse resumir?

Aprendi que é possível viver de outro jeito e ser de outro jeito. É até difícil resumir, mas esses espaços, eles representam possibilidades de diferenças e de não ser da forma que tá sendo, cada vez mais tudo igual e a grana ser a coisa central.

É um modo de vida possível…

É um modo de vida diferente. Se você acha que o mundo e as pessoas todas do mundo caminham pra uma uniformização, que todo mundo tem que ser e agir como um macho branco que tem grana e que manda no mundo, beleza. Mas se você acha que o mundo precisa ser plural e diferente, esses espaços servem pra isso. Pra você entender que é necessário um mundo diferente e que a música, dança e a poesia podem ser o centro da vida e podem nortear um modo de viver distinto desse aí. Porque pra mim eu sou um cara de classe média. Eu vim de uma família que vem do interior, da zona rural, meu avô foi agricultor, meus tios todos também, mas eu sou um cara de classe média que estudou em colégio de classe média, que teve formação universitária. Eu com dezoito anos já sabia que isso tudo era uma merda do caralho e que não tinha muito pra onde ir com isso, era uma vida meio estéril. O maracatu me deu esse outro lado, um outro jeito de viver. Então é a possibilidade de uma outra referência.siba

Essa questão da sonoridade do disco, você disse em algumas entrevistas que teve influência, referência da música congolesa. Você acha que tem alguma ligação da música congolesa com o maracatu de baque solto, ou foram coisas que passaram por ti e você reprocessou de maneira diferente?

Cara essa coisa da referência, de origem é besteira. É claro que deve ter porque uma parte significativa dos escravos que vieram pro Brasil eram da região do congo, angola e a maioria dos escravos que vieram dessa região são os que vieram primeiro e que formaram o que a gente chama de cultura popular. E é fácil perceber uma relação entre a cultura popular com música do congo. Mas essa coisa da relação da origem, da raiz é besteira. É pessoal, sou eu, eu tive uma experiência de sentir essa música diferente pra mim, de me sentir representado nela e de alguma forma me aprofundar nessa escuta, de usar ela como elemento de estranhamento, de fertilização. Porque pra mim a questão tá muito em quando você procura um caminho diferente, você precisa de um elemento que fertilize porque não dá pra você pegar um estilo e seguir ele quando já não tem mais o que dar. Pra mim a música do congo serve muito como isso, pra mim, só pra mim, mas não tem a ver com um elemento de origem.

Durante a feitura do disco você estava escutando essa música?

Eu ouço música moderna africana há alguns anos já, agora a do Congo sempre me escapou por algum motivo. Mas ela vem sendo uma referência desde o processo do Avante, desde 2010, já é uma história, eu já sou meio “congofreak”. No Brasil eu não conheço ninguém que goste dessa música do congo como eu gosto, normalmente essa referência passa batida aqui. Na Bélgica e na França, como tem essa relação de colônia é mais próxima, né.

Talvez Caçapa (músico pernambucano Rodrigo Caçapa)…

Sim, tem mais gente, Caçapa, Kiko.

E o Kiko (Kiko Dinucci, integrante da banda paulista Metá Metá) tem uma participação na faixa O Inimigo Dorme, como foi o convite?

Kiko é brother, amigo, parceiro e eu adoro o violão dele. Não tem muito o que dizer, tava perto ali, tinha a ver e foi, aconteceu. Todas as participações do disco têm uma relação pessoal.

O disco foi tu que produziu.

Por isso que saiu daquele jeito! Hahahahahaha!

Ele foi mixado pelo Kalil (Yuri Kalil, da banda cearense Cidadão Instigado) e o Catatau (Fernando Catatau, produtor musical e integrante da banda cearense Cidadão Instigado) produziu o Avante. Você vê alguma ligação estética com o Ceará, essas pessoas daqui?

O Kalil vem com a relação com o Cidadão, não vai muito além disso. É um cara que eu gosto do som que ele tira, no momento de mixar tinha uma condição de tempo e uma possibilidade de fazer, não vai muito mais longe que isso. Sim, eu adoro como ele lida com o som e a mixagem é uma coisa que define muito o trabalho, o disco. É preciso ter uma comunicação e naquele momento de decidir a mix Kalil tava mais próximo, a comunicação, só isso.

Por que você regravou Gavião, que foi gravada pela primeira vez no terceiro disco do Mestre Ambrósio? Qual foi sua motivação principal?

A música importa pouco nesse caso aí. Em algum momento do processo do desenvolvimento do Baile Solto eu fui tentando resgatar alguns textos que faziam sentido pra mim. Aí o texto do Gavião se ele conversa com o resto do disco, ele tem uma proposta que acho bem interessante, representa de alguma forma essa possibilidade do assombro com isso que a gente chama de natureza. A gente vive uma relação bem careta, bem definida, a natureza é o lá fora e é ao mesmo tempo um produto, matéria-prima. É a possibilidade de você se assombrar com a existência de uma outra criatura e é um texto velho meu que eu gravei no Mestre Ambrósio, mas é de muito antes. De repente eu fui percebendo que o texto conversava com meu momento. A possibilidade do assombro perante uma outra forma de vida que hoje eu acho isso bem importante. A gente precisa redescobrir esse assombro pra reconstruir o respeito que tá acabando com várias formas de vida, basicamente isso.

Em O Inimigo Dorme e Três Carmelitas, o tema do sonho aparece bastante nessas duas faixas. Como é que tu acha que é possível fazer isso? Você acha que faz isso no teu trabalho, uma possibilidade de se sonhar fazendo a tua música?

Só o fato de fazer o que eu faço com os meus parceiros já é uma coisa bem surreal. Uma coisa que não tem formatação direito como profissão até hoje, num mundo cada vez mais formatado como uma empresa, como carreira. A própria escolha já é meio bizarra. Não sei, tudo isso tem a ver com não aceitar viver num mundo onde a grana é o valor central. Três Carmelitas tem mais a ver com a coisa onírica mesmo, de sonho, de afirmação de uma relação familiar e feminina. O Inimigo Dorme já é outra coisa, mas tem uma questão de aceitar que seja possível imaginar caminhos diferentes, não ser isso somente, ser outra coisa, mesmo que dê errado, foda-se, é isso.

A poesia, ela ainda cabe né?

Tem que caber né, alguma poesia…

Por mais que o momento seja pessimista…

O momento é pessimista, mas sempre é. Então qual é o lugar, qual é o elemento que deixa pelo menos a força de reagir? Porque pessimista é, mas tem que ter força pra tentar alguma coisa. Fazer o quê? Abaixar a cabeça? Assistir o Sílvio Santos, ainda?


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