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“Em termo de potencial o Nordeste é um vulcão à beira da erupção criativa” (Fotos: Cristofthe Fernandes/Revista Berro)
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Na segunda parte da entrevista Camilo Cavalcante fala sobre cinema pernambucano e cearense, além de explicar alguns processos de construção do seu último filme, o longa A História da Eternidade.
Revista Berro: Você cita alguns poetas como Drummond e Torquato Neto no seu último longa. Como foi a montagem das referências artísticas n´A História de Eternidade?
Camilo: Na verdade eu trabalho sempre com muitas referências e influências. Todos os meus filmes têm muitas referências, seja literária, seja musical, seja cinematográfica, seja das artes plásticas. Nesse filme é como um mural de Alfonsina, uma bricolagem de referências que me tocam, primeiramente, coisas que me sensibilizam.
Que você acha que vai encaixar na história?
Camilo: Vem pra mim de uma forma esquemática e natural. O filme demorou muito pra ser realizado, com processo de inscrição de edital e tal, e nesse tempo pra mim a música “Fala” era como um dogma. Eu sabia da importância dessa música dramaturgicamente, eu sabia que o primeiro movimento de câmera seria quando entra o arranjo de violinos, seria ali. É um dogma que eu me coloquei. Quando o mundo gira junto com o personagem, e isso acontece aos cinqüenta minutos de filme, é um momento de epifania, um movimento libertário, o quanto a arte pode ser libertária e transformadora. Um momento onde o personagem parece que vai alçar voo. É um filme que tem três momentos elípticos. Tem esse primeiro momento, que é o “fala”. Depois tem o momento onde o tio apresenta o mar pra sobrinha, onde a catarse é possível através desse movimento. E tem um terceiro momento elíptico que é o sol com um halo, que representa o olho do cego que vagueia procurando por um, representa o ovário de Querência fecundado, representa o sol, logicamente… e representa também o Ouroboros, que é o símbolo da cobra comendo o próprio rabo, que significa a eternidade. Um ciclo que sempre se repete.
O sol sempre há de brilhar mais uma vez, né?
Camilo: Pois é, a vida continua… a gente tem tudo ali representado naquele microcosmo, a humanidade tá representada em termo de sentimento: tem o ódio, tem o ciúme, tem o desejo, tem a gratidão, a ingratidão, tem a generosidade. Muitos sentimentos e contradições do ser humano representadas ali naquele microcosmo.
Algumas pessoas colocaram os personagens como clichês, como uma representação forçada do sertão. Você pode comentar sobre a construção dos personagens?
Camilo: A gente tá mexendo com um trabalho que é como uma mitologia sertaneja. O cego Aderaldo, a menina sonhadora, o pai patrão, o artista como uma pessoa doente, incompreendido… mas acredito que a gente consegue ressignificar esses arquétipos. Do mesmo jeito que eu tive a liberdade de fazer o filme, de contar a estória da maneira como eu queria, o público tem a liberdade de sentir o filme da maneira que puder. Apesar de tudo é um filme que tem várias camadas, várias formas de leitura. Mas pra mim o problema é que tem gente que olha e vê como um livro com as páginas em branco, nisso aí eu não posso fazer nada.
Você não pode colocar um arco-íris onde você pretende um sol…
Camilo: É… é um filme que se completa com o olhar do público.
Em sua fotografia existe uma unicidade de quadro, na escolha das cores e tal. Você pode falar dessa constância em seu trabalho?
Camilo: Pra mim existem três pilares principais para a construção dos meus filmes. Os atores, o roteiro e a fotografia. N´A História da Eternidade quem assina a fotografia é Beto Martins, que é sertanejo, ele é de Uauá, no interior da Bahia. Ele construiu toda a carreira em Recife, mas tem raízes profundas no sertão e trouxe esse olhar de dentro pra fora.
Você pode comentar sobre a presença da morte no seu trabalho? É um tema bem recorrente nos seus outros filmes, né?
Camilo: Morte é vida, né? É a coisa mais natural e mais óbvia da vida. Quando você nasce você sabe que vai morrer. Eu me identifico muito com o Torquato Neto, eu acho que sou um ser melancólico, reflexivo, e a morte faz parte dessa reflexão. Se você passa a encarar a morte de uma forma natural, você acaba sendo mais feliz, ao contrário do ser deprimido que passa a reclamar da proximidade da morte.
O Chico Buarque uma vez falou que se incomoda com o fato de ter que escrever em um livro o que ele poderia escrever em uma crônica. A História da Eternidade foi finalizado mais de dez anos depois do curta homônimo seu. Como foi essa relação com o tempo nessas duas obras?
Camilo: Na verdade eu acho que cada ideia pede um tempo, não é nem o autor quem diz isso. Depende até quando você pretende mergulhar e enfiar o dedo na ferida. Eu acredito que o longa não é uma extensão do curta, são dois trabalhos bem diferentes com um contexto sertanejo semelhante. Tem a minha busca pela poesia audiovisual que também tá presente nos dois trabalhos. A ideia do longa nasceu enquanto o curta tava sendo filmado, eu acho que o símbolo do Ouroboros também tá presente nas duas obras, mas narrativamente são obras bem distintas. A ideia vem do nosso lado mais subjetivo, mais inconsciente, então ela não vem com um tempo predefinido.
O Baile Perfumado (filme de Lírio Ferreira e Paulo Caldas) foi um marco da retomada do cinema nacional e também uma celebração do movimento Manguebit, juntando muitos musicistas, cineastas, artistas plásticas e tudo mais. Esse processo chegou a saturar a cidade, ou catalisou outros processos?
Camilo: O Baile Perfumado foi o filme mais importante da retomada do cinema brasileiro e veio música e cinema junto numa época de seca cultural no país, onde não tinha nada. No caso do cinema isso facilita a vida artística. Por exemplo, ajudou o pessoal do audiovisual há 12 anos atrás a se juntar para escrever um manifesto e entregou ao governador que incrivelmente acatou. Logo depois ele fez um edital consolidado de 2 milhões, no ano seguinte 4 (milhões), no outro ano 6 (milhões), no ano seguinte 8 (milhões), no outro 10 (milhões) e esse ano foi de 12 milhões. Sem dúvida foi fruto dessa união, além da conjunção de outros fatores, como o reconhecimento da produção pernambucana no circuito nacional. Hoje em dia o cinema é cultura, mas também é economia, emprega muita gente em muitos setores primários, secundários e terciários.
E sobre a produção cearense, como você analisa o cinema produzido aqui?
Camilo: A produção cearense é fantástica! Aqui tem várias gerações coabitando, como lá em Recife. Você encontra produção desde Rosemberg Cariry, passando por Karim Ainöuz, o pessoal do Alumbramento, Ivo Lopes, que é um fotógrafo maravilhoso… tem o pessoal mais novo, como Leonardo Mouramateus. É um audiovisual muito inquieto e muito diverso. Eu acredito que o cinema nordestino é o que tem de melhor na produção cinematográfica brasileira contemporânea, o resto meio que se acomodou, tá tudo meio que em banho-maria. Os nove estados do nordeste tem essa pujança artística/criativa muito forte. Claro que em alguns estados se produz mais que outros, foi onde o governo conseguiu enxergar essa importância estratégica do audiovisual pra a cultura de um povo, mas em termo de potencial o nordeste é um vulcão à beira da erupção criativa.