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“Socialite afirma que gente pobre está mais ‘chic’ passando frio”. Este comentário não vem de uma revista de moda ou fofoca, mas é uma manchete fictícia, escrita nos letreiros de um telejornal que compõe a trama do curta-metragem “Recife Frio” (2009), de Kleber Mendonça Filho. O curta inteiro é gravado como pseudo-documentário ou mockumentary, em tom ao mesmo tempo humorístico e sombrio, que trata sobre um estranho acontecimento meteorológico: a queda de um meteorito que causa o surgimento de nuvens permanentes sobre Recife, que baixam drasticamente a temperatura da cidade tropical. A partir deste pressuposto improvável, quase de ficção científica (a composição das imagens e o enredo prestam homenagem a Chris Marker e seus filmes La Jetée e Sans Soleil), Kleber Medonça faz uma ampla curva para pegar o espectador pelas costas: o falso documentário documenta com precisão questões sociais camufladas no cotidiano do Recife quente.
Sobre sua passagem do documentário para a ficção, o cineasta polonês Krzysztof Kieslowski teria afirmado que a segunda conseguiria captar o real de maneira ainda mais profunda que o primeiro. “Recife Frio” comprova esta tese. Toda uma parafernália de técnicas é utilizada para afastar o espectador do enredo, supostamente distante, mas trata-se, como dissemos, de uma distração: quando ele menos espera está diante do real até então despercebido. O pseudo-documentário se inicia ironicamente como uma reportagem especial para um jornal argentino. Sua narração, o estilo das entrevistas, as imagens turísticas utilizadas para mostrar o Recife antigo, quente e tropical, e a atual, fria, escura e chuvosa, tentam o tempo inteiro evidenciar o faz de conta. Aos poucos, elementos menos fantasiosos e distantes pontilham a narração. As imagens elogiosas das recifenses de biquíni e do estouro de uma água de coco são entremeadas pela referência ao cheiro de urina da cidade e do Capibaribe poluído, chamado de “caldo escuro”. Até aí, tudo bem, poderia ser apenas uma maldade dos documentaristas argentinos.
A medida que a narrativa prossegue, no entanto, os problemas ficcionais que surgem com a chegada do frio evidenciam problemas inequivocamente reais. Os moradores de rua incendeiam a noite com fogueiras, em busca de calor, mas morrem aos poucos de frio (o jornal fala de mais de 300 desde a mudança climática). A fragilidade da nova situação põe em risco os frágeis da velha situação. Neste sentido, apesar da paisagem e dos personagens locais, o Recife do curta é metonímia do Brasil inteiro (talvez por isso a necessidade de um narrador estrangeiro, não apenas de outro estado). A lente realista do falso documentário ajuda a operar uma inversão importante: mostra o quão ficcional é, na verdade, a concepção do Recife verdadeiro como tropical, quente, alegre. O Recife frio, por outro lado, apresenta através do frio atmosférico uma outro tipo de frieza, que aparece genericamente no curta caracterizada como frieza “humana” – típica dos grandes centros urbanos de nosso país.
A constatação desta frieza não se dá de maneira austera e documental, mas ao contrário, através do bom humor, e da ironia (sempre sublinhada na narração argentina), dos entrevistados. Cidadãos comuns, moradores de rua, repentistas, lojistas e instituições religiosas são mostrados em sua adaptação de improviso, mais ou menos dramático, às novas condições. Um dos pontos altos deste humor é o alívio justo de Clodoaldo Alves, o Papai Noel profissional que, depois de sofrer por anos com o calor da cidade, pode agora exercer sua profissão com menos desconforto – “Naquela época, 34 graus era pra matar, com aquela roupa”. Junto com o bom humor desta representação, vai também uma ridicularização velada de nossa apropriação tropical do Natal do inverno estadunidense, sintetizada em detalhe na imagem do Papai Noel que se refresca desesperadamente com a água de coco. Contar sobre os outros personagens irônicos e dramáticos, como o bretão melancólico, seria estragar um pouco o prazer de quem ainda não assistiu ao filme.
Podemos seguir, então, para a questão arquitetônica, que é tocada de modo certeiro pelo curta. Desde meados do século XIX até recentemente, foi recorrente em nossa país a tentativa de explicar e justificar nossa estrutura social a partir de condições geográficas e climáticas. O Recife capturado e resfriado pela lente de Kleber Mendonça desmascara estes esforços ao demonstrar que as relações de poder tem, na verdade, fundamentação econômica. Através da transformação climática, somos introduzidos também em uma mudança arquitetônica: a família de alta classe, que possui um apartamento amplo, com grandes janelas, à beira-mar, sofre agora com a desvalorização do imóvel, devido ao frio. Ao adentrar as entranhas do apartamento, abandonamos por um momento o tom humorístico (nós, os telespectadores, o narrador e a câmera seguem com curiosa leveza) e nos deparamos com o horror histórico brasileiro incrustado na estrutura dos apartamentos. A família, pai, mãe e filho, brancos, descrevem um “conflito familiar” em que o filho, que traja uma jaqueta com o emblema da bandeira alemã, deseja abrir mão de sua suíte para ficar com o quarto da empregada negra. O narrador distante, argentino, descreve este tipo de quarto com as seguintes palavras: “Essa instituição arquitetônica brasileira é herança da escravidão, fantasma moderno da senzala”. O menor quarto da casa, relegado aos fundos, praticamente sem janelas, tem agora o benefício de ser o mais quente e por isso é tomado pelo filho. A empregada doméstica quer seu quarto de volta. A mãe justifica seu incômodo dizendo que a empregada não está acostumada com uma suíte. A resposta da empregada desmascara: “O quarto de lá é mais frio”. O desejo do jovem patrão branco prevalece no quente e também no frio.
O salto ficcional do curta para dentro da arquitetura real de Recife quase não tem volta. Do quarto da empregada passamos para a feiura urbana e as preocupações com segurança. Somos brindados com uma sequência de imagens de grades, portas, prédios angulosos, asfaltos, condomínios que nos lançam do frio fictício e humorístico para o frio real e horroroso do real. Irremediavelmente misturados os dois Recifes, assistimos a cenas, sem saber exatamente onde se passam, de famílias que abandonam suas casas frias para se comprimir no espaço quente do shopping, de outros presos, os das cadeias, que organizam exposições de fotos sobre as novas nuvens: “Óia pra cima irmão”… Esta vertigem só é superada, enfim, por um canto poderoso e profético, no meio da praia cinza.
O fim do curta-metragem guarda uma possibilidade de redenção: a voz e a luz dourada de Lia de Itamaracá, a negra que canta a ciranda, anunciam um esforço de atravessar as nuvens perpétuas que cobrem a cidade e a praia. O filme de Kleber Mendonça quer invocar este tímido raio de sol, usando a força crítica da ficção, num esforço para aquecer nossas cidades frias.
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Tomaz Amorim tem 28 anos, nasceu e cresceu na cidade de Poá, às margens da Grande São Paulo. É poeta, faz doutorado em literatura e pensa misturadamente sobre três coisas: arte, amor e justiça social; e é autor do blog 3 parágrafos de crítica