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(Foto: Chico Célio/Revista Berro)
Na última terça-feira à noite, após o racha na quadra – que é de lei! -, trocávamos umas idéias na calçadinha do Vanor quando, repentinamente, somos silenciados por dezenas de fogos de artifício que irrompiam no céu lá pras bandas do Tancredo Neves, comunidade da zona sul de Fortaleza com índice baixíssimo de desenvolvimento humano.
Foi uma saraivada de fogos! Não era jogo do Fortaleza nem do Ceará, tampouco dos times da Vila e do Tancredo, que jogam aos domingos. Engolimos a seco! Para muitos, seria apenas mais uma vez pessoas lançando fogos de artifício ao ar. Para nós, que moramos ali próximo e convivemos há diversos anos com aquele ato ritualístico, sabíamos que se tratava de alguma morte. Não uma morte morrida, mas uma morte matada… um homicídio; a bem da verdade, um acerto de contas do crime!
Ligamos de imediato para um amigo que mora por lá, para saber se ouvira falar de alguma notícia trágica. A morte podia ter atingido com sua foice imperdoável algum amigo, um conhecido, mais um. “Escutei aqui também, mas parece que é lá pro Areal, num é aqui não”, disse pelo telefone o amigo consultado. No outro dia, soubemos que de fato a morte tinha deixado seu rastro de sangue e choro no Areal, comunidade situada às margens da BR-116, separada do Tancredo Neves pelo rio Cocó.
Preto, pobre, favela
Coroa chorando, corpo coberto, sangue no chão, ao lado uma vela
Acerto de contas, cheirou e não pagou
Os cara chegaram e cobraram com tiro na cara
O sofrimento fica pra coroa
Que sempre rezava querendo ver seu filho numa boa
(MV Bill – Traficando Informação – obs: perdeu muito no conceito depois que foi ator da Malhação e jurado do Faustão)
O ritual de lançar fogos de artifício ao céu para comemorar e demarcar a morte de um integrante de uma gangue rival está incorporado ao modus vivendi dos jovens dessas comunidades. Há todo um controle geográfico-territorial dos espaços que podem – ou não! – ser ocupados pelos integrantes das facções. O Tancredo Neves tem uma população de cerca de 30 mil pessoas. Segundo dados do Habitar Brasil/BID, 10% dela analfabeta e 70% vivendo abaixo da linha da pobreza. Nessas condições miseráveis, o tráfico se torna um caminho sedutor e natural para grande parte dos jovens! Só no Tancredo, quatro “organizações” do crime disputam o comércio de drogas e armas na comunidade: Coloral, Cachoeirinha, Rua das Araras e Pólo. Quem atravessar o espaço alheio vai pra vala! Isso sem falar das disputas pelo comando do mercado de drogas na região com as comunidades vizinhas da Vila Cazumba, do Tasso e do Areal.
O movimento do crime tem suas leis próprias. Um enorme cabedal de códigos tácitos de conduta e comportamento foi, ao longo dos anos, sendo assimilado pelos “soldados” da atividade. Quem descumpre as regras vira estatística. Como dito, o crime se insinua, seduz e, por fim, abocanha grande parcela dos jovens das comunidades pobres brasileiras. Nessa guerra civil fratricida e insana, quem morre sempre é o preto, pobre, favelado. Morando por estas bandas, próximo a essas comunidades, já velei amigos, soube da morte de conhecidos e de muitos desconhecidos. Estão se matando num etnocídio diário, que mancha de sangue e lágrimas becos e vielas na periferia. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Ceará, até a noite de 8 de dezembro de 2013, 286 adolescentes menores de 18 anos foram assassinados na Grande Fortaleza ao longo do ano, um aumento de 25% em relação a 2012. Falando no ano passado, houve 1.628 assassinatos na capital cearense, redundando numa média macabra de mais de quatro homicídios por dia. A média em 2013 já passou dos cinco homicídios/dia. Números maiores do que o de países “oficialmente” em guerra. Observe-se que em Fortaleza mata-se, proporcionalmente, cinco vezes mais que em São Paulo. É como diz, com muita propriedade, o Facção Central, em SP Auschwitz – Direto do Campo de Extermínio, as favelas brasileiras são verdadeiros campos de extermínio, locais de carnificina cotidiana.
Esse banho de sangue permanente é completamente ignorado pela classe média e pela elite, que dão de ombros às mortes da periferia e só se preocupam com a violência quando ela lhe bate à porta, ou seja, sai da favela e toma de assalto seus bens num condomínio de luxo! O extermínio da juventude negra periférica é escanteado para debaixo do tapete. A violência na favela foi admitida como natural pela sociedade. Por que um assassinato num bairro nobre vale mais que a carnificina na favela? O espetáculo fez triunfar a seleção das mortes que precisam ser lamentadas. As dos negros pobres da periferia se transformam em espetacularização nos programas-lixo – e só! A de um classe-mediano vira rapidamente motivo de comoção nacional e de editoriais hipócritas sobre violência urbana na mídia convencional. Reitero: por que uma morte vale mais que as muitas outras? Está tudo errado!
“É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas” (Gilles Deleuze, Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle).
Da guerra interna, dentro da favela
Só morre preto e branco pobre, que faz parte dela
O sistema faz o povo lutar contra o povo
Mas na verdade o nosso inimigo é outro
O inimigo usa terno e gravata
Mas ao contrário a gente aqui é que se mata
Fazendo justamente o que o sistema quer, saindo para roubar
Para botar um Nike no pé!
(MV Bill – Traficando Informação)
Abrindo aqui um parêntese, o extermínio da juventude negra poderia ser minorado com a legalização das drogas e o consequente desbaratamento das facções do tráfico. É o comércio de drogas, ou melhor, a disputa pelo controle desse mercado clandestino o principal responsável pelas mortes na favela. Legalizar e regulamentar as drogas seria um profundo golpe na raiz de milhares de homicídios no Brasil. A política proibicionista claramente fracassou, promoveu um morticínio generalizado em diversos países do mundo (Brasil, México, Colômbia, etc.) e aumentou o poder do tráfico internacional com a repressão, pois quanto maior a repressão, mais cara a droga – e, consequentemente, maior o lucro dos traficantes. A política de “guerra às drogas”, capitaneada pelos EUA e mimetizada por diversas nações, entre estas o Brasil, tem a clara função de controle social, tanto quando produz a carnificina na favela, bem como quando encarcera em massa moradores dessas comunidades. Enquanto os jovens se matam nos subúrbios pelo comando do tráfico, os grandes barões da droga – aqueles que transportam quase meia tonelada de cocaína por helicópteros – lavam o dinheiro em paraísos fiscais e sentam-se à mesa do capitalismo financeiro para tratar com governantes sobre negócios. Depois, para comemorar o sucesso das empreitadas público-privadas, brindam com uísque doze anos e degustam foie gras, rindo debochadamente de tudo e de todos.
Os ricos fazem campanha contra as drogas
E falam sobre o poder destrutivo delas.
Por outro lado promovem e ganham muito dinheiro
Com o álcool que é vendido na favela.
(Racionais MC´s – O Homem na Estrada)
Enfim, é chegada a hora de repensar esse modelo por uma alternativa que, ao invés da repressão violenta e de suas consequências nocivas, permita o cultivo caseiro da maconha, promova espaços para o consumo e a compra regulada da erva, como as cooperativas canábicas (comuns em alguns países europeus), privilegie campanhas de prevenção e informação sobre todos os narcóticos (assim como já faz com o álcool e o cigarro), trabalhe com a redução de danos – oferecendo ajuda psicológica e de saúde gratuita aos usuários, ou seja, foque a adicção como questão de saúde pública e não mais como caso de segurança, entre outras medidas. Fecha parêntese.
A polícia, por sua vez, desempenha o seu papel costumeiro. Lava as mãos como Pilatos e faz vista grossa ao morticínio da favela em troca de gordas propinas que subornam dos traficantes. Noutras vezes, é ela mesma a praticante do homicídio. A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. De acordo com dados do 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em média, cinco pessoas são mortas por dia no Brasil pela polícia, que vê o povo pobre, dos guetos, como um exército inimigo.
Se diz que moleque de rua rouba,
O governo, a polícia, no Brasil quem não rouba?
Ele só não tem diploma pra roubar,
Ele não se esconde atrás de uma farda suja.
É tudo uma questão de reflexão irmão,
É uma questão de pensar.
A polícia sempre dá o mau exemplo,
Lava a minha rua de sangue, leva o ódio pra dentro.
Pra dentro de cada canto da cidade,
Pra cima dos quatro extremos da simplicidade.
(Racionais MC´s – Mágico de Oz)
Ainda na década de 60 do século passado, Malcolm X disse que “depois que a polícia convence o público branco de que o negro é um elemento criminoso, a polícia pode chegar e interrogar, brutalizar e assassinar negros desarmados e inocentes. E o público branco é manipulável o bastante para lhes dar apoio. Isso faz da comunidade negra um Estado policial. Isso faz do bairro negro um Estado policial. É o bairro mais patrulhado. Tem mais polícia que qualquer outro bairro, e ainda assim, tem mais crimes que qualquer outro bairro. Como pode ter mais policiais e mais crimes? Como pode? Isso nos mostra que a polícia deve estar envolvida com os criminosos”. De tão atual parece que foi ontem, né?
Em 2012, quase 2.000 pessoas foram vitimadas em “abordagens” policiais. Sabemos que quase todas essas mortes entraram para a estatística de “autos de resistência”, que é quando a polícia assassina e quer dizer isso de uma forma polida. Essa terminologia tacanha encobre graves violações de direitos humanos e acoberta ações de grupos policiais de extermínio. Não à toa o Conselho de Direitos Humanos da ONU já recomendou, por mais de uma vez, o fim da PM no Brasil. É preciso que esse debate se avolume e ganhe vulto na sociedade e não se restrinja tão-somente à academia. Desmilitarizar a polícia e repensar um novo modelo de segurança pública é passo imprescindível para garantirmos a democracia e a liberdade reais – não essas de “faz-de-conta” – bem como nos livrarmos de vez dos fantasmas e do modus operandi da ditadura dos milicos, que insistem em nos assombrar quase três décadas após seu fim.
Enquanto essa carnificina ocorre cotidianamente, milhares de outros moradores das favelas, que não escapam à ação controladora do Estado, são entupidos em instituições penitenciárias, que funcionam como verdadeiras universidades do crime. Vejam só que conveniente ao Estado: não dá suporte tampouco garantia mínima de dignidade a estas pessoas durante toda a vida, mas tem a mão rápida e seletiva para algemá-los e conduzi-los ao xilindró na primeira subversão “à ordem e aos bons costumes”. Ou seja: o Estado quase nunca chega aos guetos com sua função de garantir os direitos humanos básicos, mas açoda-se para marcar presença quando é para levar a cabo as funções punitiva e de controle social. É o Vigiar e Punir, de Foucault, sendo levado às últimas e mais bárbaras consequências.
Assim, o Brasil tem hoje a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de 580 mil detentos ou 274 por 100 mil habitantes e os mais altos índices de criminalidade do planeta. Percebe-se, claramente, que algo está errado. E é o nosso modelo de segurança pública, inserido numa lógica militar e também – é preciso sempre que se leve em conta – numa engrenagem capitalista do espetáculo, que transforma as mortes da periferia em espetacularização nos programas-lixo da tevê, que rendem audiência e, por isso, rendem anúncios, que rendem dinheiro, etc., perfazendo um movimento cíclico que se locupleta em várias outras ramificações, girando a roda-gigante do capital.
Não percamos de vista que o genocídio dos jovens negros nas favelas, a criminalização da pobreza e da negritude, a política de guerra às drogas e a superpopulação carcerária, composta esmagadoramente por moradores da periferia, são a face mais nefasta do “espetáculo” brasileiro. Para a sociedade do controle e do consumo, o dinheiro gerado pela construção do VLT, à base de remoções violentas, é muito mais importante que as mortes cotidianas do Tancredo, do Areal, da Vila Cazumba…
Mas, afinal, quem se importa com os mortos da favela?