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Por Thiago Noronha
O que será contado?
Como será narrada a era humana?
O que esperar desse bizarro experimento fora de controle?
Quem presenciará?
Haverá, universo afora, algum agrupamento atômico capaz de apreciar nossas criações e feitos?
Melodias, pinturas, receitas de bolo de milho. A quem restará?
E nossos amores, tão admiráveis em suas complexidades, quem sentirá tudo isso quando nosso tempo se for?
Propósitos?
O segredo da vida?
Não fazer, não ser, não dizer. Acomodar e conformar.
E nossas lutas? Quem as contará eternidade afora?
Um ideal.
Em que fase evolutiva células agrupadas decidiram ter um ideal?
Valores, conceitos, crenças, paixões, criação artística, humor.
De onde vem o humor na natureza?
Cá estou eu perdendo cinco minutos ao imaginar a risada de um caramujo.
Que tipo de piada agradaria a um caramujo?
Acontece que essa ansiedade tão característica humana é viciada em construir subterfúgios que resolvam essa equação do se fazer notar e perdurar.
Narrativas gregas nos lembram as recorrentes frases nos campos de batalha: ‘Se morremos hoje, nossos nomes e feitos serão eternos’.
Serão?
Quantos nomes já se perderam nesse mínimo intervalo de tempo em que vivemos em sociedade?
Desde quando os humanos possuem nomes?
Caramujos têm nomes? Qual seria o ‘João’ dos caramujos? Terôncio, talvez?!
‘Os heróis da história humana morreram anônimos, nos fronts de batalhas’.
O que é ser herói? Quem são os nossos? Quem lembrará dos nossos heróis quando nosso tempo se for? Que olhos lacrimarão ao ouvir o discurso de Fred Hampton?
‘Por que não morrer pelo povo? Por que não lutar pelo povo?’
Fred Hampton morreu assassinado aos 21 anos de idade.
Fred Hampton lutou.
Pelo quê morrer?
Que lutas e ideais te convenceriam o risco a existência?
A burra coragem humana.
Uma espécie que se vangloria de prosperar, descobrir e travar grandes guerras territoriais.
Territorialistas, egoístas, e desumanos. Eis o homo sapiens em seu amostral mais sincero.
Dizem que o egoísmo foi fundamental para a sobrevivência da espécie.
A espécie que pensa. O topo da pirâmide. O polegar opositor.
É uma espécie engraçada. Meio animal adestrado. Amam tão bonito e odeiam tão feio. Limpos e sujos. Um predador descontrolado e medroso. Medos existenciais. Um olhar perdido no espaço e uma mente cafeinada se perguntando ‘como deixaremos nossos rastros o mais longe possível?’.
Somos apenas cachorros mijando em postes. Fincando bandeiras em rochas espaciais. Uma corrida contra sabe-se lá o quê.
Vaidosos.
Como ser lembrado?
Como comunicar ao espaço?
‘Eu existi!’.
‘Foi lindo e eu preciso que saibam!’.
Somos fadados ao pó.
Uma parte da minha família acredita firmemente na procriação como método de levar o tal sobrenome e uma suposta narrativa de superações atrelado a esse sobrenome para os tempos futuros. ‘O futuro também é pó, amigo.’
Quando o humano passou a ter um sobrenome? Qual o possível sobrenome de um caramujo? Terôncio Marcha-lenta?
Voltando à família, todos os descendentes tinham, então, que ter pelo menos três filhos ao longo da vida.
Método interessante e lógico de perdurar. Mas ninguém contava com as dificuldades financeiras do começo do terceiro milênio e a cobrança sobre um dos membros desse grupo familiar pelo terceiro filho, somada às contas atrasadas, foi demais e resultou em suicídio. Quais os animais que se suicidam? O que leva um organismo a optar pela inexistência? Ter um terceiro filho é tão ruim assim? Pensar demais é perigoso? Como seria a carta de suicídio de um caramujo? O que teria ele a justificar?
Ironicamente, um outro lado da família é conhecido pelo recorrente suicídio de seus membros quando chega-se ali pelos cinquenta anos. Chamam essa parte da família de ‘os tristes’. A tal da tradição do suicídio é tão presente que rola uma certa cobrança. ‘Iai, num já tá na tua hora não?’.
Rola até uma competição das melhores cartas de suicídio. Um dos tristes passou vinte e sete anos preparando uma tal carta inesquecível. Infelizmente, escolheu se enforcar com a carta no bolso da calça. Quanta dramaturgia! Humanos, vaidosos, humanos. O sufocamento o fez mijar nas calças e a tão preparada mensagem de despedida virou um papel mijado impossível de ler.
Encontraram-no lá, mijado, de língua pra fora, coloração esquisita. Eu gosto de pensar que ele nunca tomou conhecimento que a carta não aconteceu.
Um dos tristes era bem feliz. De bem com a vida. Curtia um forró e uma cachaça. Ele não queria morrer. Teve três filhos, nove netos e vinte e sete bisnetos, quem diria. Alguns se suicidaram, outros planejam fazê-lo, uns dançam forró.
No velório do velho centenário alguém lamentou ao lado do caixão: ‘ele poderia ter bebido por mais uns trinta anos’. Eu nunca esqueci dessa frase.
As últimas palavras do velho, após uma vida enterrando filhos e netos suicidas, concluíam que não valia a pena, realmente, passar de certa idade.
A carta suicídio da qual mais gostei de tomar conhecimento foi deixada por um psicanalista do Colorado (EUA) de trinta anos. Dizia: ‘Carro para Helen ou Ray. Precisa de um reparo. Dinheiro para Max e Sylvia. Exceto $137 que estou devendo a George. ‘
Quem testemunhará a espécie humana? Qual será a reação da plateia?
Qual o propósito?
Dessa leitura?
Não é dizer que não há propósito em nada devido ao fatídico e escuro fim de tudo. É mais uma reflexão sobre o que nos motiva e se parece lógico.
Mas não tem que ser lógico.
Thiago Noronha é administrador por profissão, aventureiro de coração, escritor por diversão. Um apaixonado e propagador da própria forma de ver o mundo através de palavras. Um louco. Um bom louco!
*Publicado originalmente no “Escambau“