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Por Andressa Figueiredo e Felipe Azevedo
São 15h45 de uma tarde de sol farto em Juazeiro do Norte, interior do Ceará. Os termômetros devem marcar coisa perto dos 36ºC. É outubro e o calor intenso, característico da região, já começa a dar vislumbres de sua tornada. As primeiras topiques começam a chegar na Praça do Giradouro abarrotadas por um grupo de pessoas trajando camisas de mesma cor. São homens, mulheres, crianças, jovens e idosos. Gente simples, a maior parte residente nos bairros mais pobres da cidade. Carregam nas mãos um objeto em comum: bandeiras.
As bandeiras trazem estampados rosto e número dos principais candidatos ao governo do Estado. Acontece que estamos em 2014, ano eleitoral. Nessa época, é comum passar por pontos estratégicos, como a Avenida Padre Cícero, e encontrar pessoas – pelo menos umas setenta – que a troco de um salário mínimo expõem seus corpos e rostos ao sol causticante, automóveis e transeuntes, fazendo propaganda para os grandes partidos políticos. No papel, são chamados de ativistas. Entretanto, como informa Francisca Maria, 32 anos, “nossa função aqui é segurar bandeira”.
Ativistas do passado
Difícil dizer quando esta atividade começou. Mas foi após o regime militar brasileiro, quando os partidos foram autorizados a funcionar, que as bandeiras ganharam força no país. A tradição surgiu de modo harmônico e voluntário no cerne dos partidos de esquerda, organizada por militantes que em casa mesmo as costuravam.
De acordo com o professor da Universidade Federal do Cariri (UFCA) e mestre em Sociologia, Tiago Coutinho, a militância nas campanhas de uns anos atrás era preparada a partir da aproximação ideológica entre partido e eleitor. A agenda, flexível, seguia a compatibilidade de horário dos envolvidos. “Participei de bandeiraços até 2006. Realizando reuniões, marcando militância, chamando os amigos para fazer aquilo de forma bonita, todo mundo fazia campanha se divertindo e ao mesmo tempo conversando com as pessoas e indo às ruas. Isso acabou. Alguns partidos ainda fazem essa prática de forma voluntária e organizada, mas eles são os menores dentro dessa grande disputa”, relata.
Não há dúvidas, o cenário atual é outro. Em conversa com as pessoas que rapidamente se espalham no pequeno espaço entre as duas vias da avenida, descobrimos que cada um deles recebe (ou pelo menos acordou receber) um salário mínimo, pago em duas parcelas, por quinzena. Lanches são distribuídos. Protetor solar, chapéus, bonés, água ou quaisquer outros artifícios para minimizar os impactos deixados pelo sol escaldante são de responsabilidade individual, quem quiser traz o seu. A jornada varia entre 6 e 8 horas, a depender de cada partido. Pode ocorrer ainda de estender-se um pouco mais nos dias de passeata.
Por definição, militante é todo aquele que está envolvido ativamente em alguma causa específica. Em período eleitoral, militantes partidários tomam as ruas fazendo campanhas para candidatos, é o velho “pedir voto”. Não é ilegal. Entretanto, essa atividade que deveria ser movida pela camaradagem e afinidade de valores e opiniões, vem funcionando, como tantos outros setores, pelo poder do capital.
Cáculos da campanha
O Brasil tem hoje uma das campanhas mais caras do mundo. Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) revelam que, em 2014, a soma do limite de gastos das campanhas de todos os candidatos registrados na Justiça Eleitoral é de R$ 73,9 bilhões. A maior parte desse dinheiro é fruto de doações de bancos, empreiteiras e grandes empresas. A disputa eleitoral é também uma corrida por dinheiro. Luta selvagem!
Para Roberto Cunha, professor de Filosofia da UFCA, o financiamento por parte desses grupos faz com que o espaço de expressão da intenção eleitoral seja mediado pelo dinheiro. “As eleições, em escala mundial, são decididas muito mais pelo poder econômico do que por qualquer expressão de manifestação da vontade popular. De antemão você já sabe que o candidato vitorioso será aquele com maior número de reais recebidos em suas contas”, afirma, ao relembrar das bandeiras tremulando e pessoas que ali estão sem nenhum interesse político, a não ser, é claro, a remuneração.
No Ceará, os candidatos ao governo do Estado, Camilo Santana (PT) e Eunício Oliveira (PMDB) não poupam verbas. De acordo com a prestação de contas do TSE, eles já gastaram, respectivamente, R$ 11,3 milhões e R$ 6,3 milhões, até o começo do mês passado. Do montante registrado, Camilo Santana já gastou 4,3 milhões com a contratação de militantes. Eunício Oliveira não especifica nenhum de seus gastos, todos aparecem como “baixa de recursos estimáveis em dinheiro”. Que baixas são essas, não se sabe. Bem como não se sabe ao certo o número de pessoas envolvidas, já que as assessorias dos dois partidos não responderam nosso contato até a publicação dessa matéria.
O financiamento empresarial caminha na contramão da democracia. Acreditar que as empresas doam, na condição de pessoa jurídica, por pura benevolência, seria ingênuo. É um investimento que lhes renderá proveito nos anos subsequentes. Ademais, verba desse tipo torna a concorrência desigual e falseada, já que alguns candidatos estão usando do artifício econômico para fortalecer suas campanhas.
Nossa legislação, contraditória, deixa brecha para muitas irregularidades. Exemplos não faltam. Propagandas que prejudicam higiene e estética urbanas são proibidas (Código Eleitoral, art. 243, VII). Entretanto, cavaletes e panfletos estão liberados (Res. TSE nº 23.404/2014, art. 11, §4º) mesmo sabendo que estes contribuem desagradavelmente com a poluição visual da cidade. Compra e venda de votos é ilegal. Mas contratar pessoas sob um título nada condizente de “ativista” para trabalhar em horário integral durante as eleições, comprando-lhes votos, sonhos e dignidade, é liberado.
Esse tipo de propaganda é vantajosa para quem tem seu nome exposto. Os que estão no sol quente segurando bandeira muitas vezes nem sequer puderam ler as propostas do candidato, mas estão lá por necessidade. “Não condeno nenhuma dessas pessoas porque acredito que seja fruto de necessidade, é uma grana que muitas vezes não pode ser dispensada no orçamento familiar. O que eu condeno são os partidos se apropriarem dessas necessidades para se aproveitar das pessoas e expô-las a essa situação que é extremamente desconfortável, prejudicial à saúde e ao mesmo tempo me parece uma falência da política”, finaliza o professor Tiago Coutinho.
Dona Antônia recicla e sorri
Uma senhora baixinha – não deve ter mais de 1,60 m, trajando um vestido de cor bege abaixo do joelho, chama atenção no cruzamento das avenidas Castelo Branco e Padre Cícero. De cabelos presos num rabo de cavalo, ela usa um boné amarelo para se proteger do sol, enquanto segura sua bandeira e observa atentamente o movimento dos carros que param e avançam o sinal.
De perto, dona Toinha aparenta estar na casa dos 60 anos, mas recentemente completou 51. O sorriso largo quase esconde os olhos verdes e deixa evidente o rosto enrugado e queimado pelo sol. Já perdeu as contas de quantas vezes trabalhou nas eleições, sempre segurando o estandarte do mesmo partido. Em todas as campanhas eleitorais, tem vaga garantida entre os “ativistas”. Por já ter cadastro no comitê, é sempre lembrada.
Ela faz parte do grupo de ativistas contratados pelos principais partidos na disputa ao governo do Ceará. São jovens, adultos e idosos que se misturam na praça e permanecem em pé durante três (ou até cinco) horas ininterruptas por turno. Sempre sorridente, relata como é a sua vida quando não está a serviço dos candidatos: “Quando não tem bandeira, trabalho com reciclagem, eu e meu marido vivemos disso”.
“Meu cantinho”
Na rua, conhecemos a funcionária temporária de um comitê. Nosso interesse seguinte foi o de visitar Antônia Pinto Barbosa, três filhos, seis netos. Conhecer a sua casa e a rotina como agente de reciclagem.
O bairro onde mora tem três nomes. Alguns chamam Frei Damião, outros de Baixa da Raposa, mas a maioria conhece mesmo por Mutirão. Dona Toinha mora no final de uma avenida enorme, as casas – contamos cerca de 400 – foram todas construídas do mesmo lado da via; do outro, um terreno baldio sem fim e quase sem vida. O campo aberto é coberto por mato seco, planta morta e lixo.
Depois de muito procurar o endereço, chegamos ao topo da ladeira. Um dos netos de dona Toinha, da calçada, avisou a avó da visita. Os ponteiros marcavam quase 14h. Ela apareceu na porta, enxugando o rosto suado com a camisa vermelha sem estampa. Vestia bermuda jeans e calçava sandálias de dedos laranja. Era sábado. Havia acabado de chegar da passeata do seu candidato no Centro da cidade e descansava para mais uma, marcada para as 17 horas.
“Foi difícil encontrar meu cantinho?”, pergunta sorrindo. A casa de Antônia é de chão batido, sem forro. Na entrada, o Ford Belina (provavelmente um modelo 86) estacionado, parecia há muito não sair da garagem. O “conserta-se relógio” no adesivo lateral mostra a profissão do marido. Os próximos dois cômodos são o quarto (uma cama de casal, guarda-roupa e uma bicicleta encostada na parede) e a cozinha, onde conversamos. No quintal, uma pilha de sacos cheios até a boca de garrafas, latinhas, fios de cobre e papelão que foram colhidos antes da época da campanha. Tudo separado e esperando para ser vendido no depósito.
Senta-se conosco a filha mais nova de dona Toinha. Arlinda tem 22 anos e é mãe desde os 16, largou a escola no 9º ano por conta do preconceito das amigas, mora vizinho e é quem cuida da casa dos pais enquanto estão trabalhando.
“De coração”
Dona Toinha nos recebe como se há muito nos conhecesse. “Ficou sabendo, não?”, pergunta. “O pessoal lá do outro partido quis arrumar confusão com o povo nosso, deu até polícia”. Ela fala sobre o desentendimento entre trabalhadores dos dois grandes partidos durante passeatas, naquela mesma manhã. Houve provocações dos dois lados e o reforço policial interviu. “Esse povo vem puxar briga pra depois sair aí na televisão que a gente quem começou”, completa.
Quando perguntamos se ela votaria no candidato por quem trabalha: “Voto, claro! De coração”, diz, batendo no peito. É comum que a política no Brasil – no interior, principalmente -, esteja baseada na associação dos eleitores com os candidatos isolados, e não com os programas de cada partido.
Por conta de um problema nas costas, dona Toinha não consegue “trabalhar como queria”. O marido ajuda, mas tem vergonha do trabalho de coleta de material reciclado e se limita, portanto, a um serviço de relojoeiro aqui e outro acolá. “Eu não tenho vergonha, não! Desculpe meu jeito, mas acho que o que faz vergonha é roubar, né?”. Claro!
Dona Antônia começou cedo, aos dez anos já trabalhava em casa de família. Precisava ajudar a mãe a cuidar dos 9 filhos, depois que seu pai sofreu um acidente e não pôde mais fazer esforço. A casa onde mora foi construída por ela, literalmente, assim como as outras 400 que contamos desde o começo da rua. “Foi feito um mutirão de moradores aqui, eu carregava água, pedra e, no final, me colocaram pra ser a cozinheira dos pedreiros”, explica.
Ela vive a política diferente: enquanto fervem os debates na televisão, enquanto estão a todo vapor as discussões no Facebook, ser eleitora, para ela, significa vestir – e suar – a camisa. Pode ser a renda extra ou o descanso da carroça que fazem do trabalho de segurar bandeira uma via de escape da lida comum mais fatigante. Mas, “bom mesmo era se quando acabasse a política, a gente continuasse tendo serviço, né?”.
Josiane, mãe e menina
Todos os dias, às 5h30 da manhã, uma moça caminha com a filha de um ano e meio pelas ruas do bairro Mutirão. Precisa trabalhar. Os berçários estão cheios. Para conseguir uma vaga para a pequena, se vê obrigada a esperar nas infindáveis listas de espera. Por enquanto, a bebê fica na casa da avó ou da tia, assim mesmo, revezando. A mãe tem que conseguir algum dinheiro para manter o sustento das duas.
Josiane Cassimiro segura sua bandeira no meio-fio que separa mão e contramão da Avenida Padre Cícero. Em frente ao shopping, conversa distraída com um amigo que passa pelo local, sempre atenta à supervisora que “não gosta que fique de conversa”. Tem 22 anos, está grávida de cinco meses e nunca trabalhou formalmente, com registro em carteira. Em Fortaleza, empregou-se como babá. Julgava satisfatório o salário mais vale transporte que recebia na capital, mas depois que engravidou voltou temorosa. “Lá morre muita gente”, justifica.
O jeito meigo e tímido contrasta com a barriga já crescida. Assim como dona Toinha, vê na campanha eleitoral uma alternativa de renda. Estudou pouco, parou na 8ª série do Ensino Fundamental, “já não gostava muito, aí comecei a namorar e parei de vez”. O rapaz foi seu primeiro e único namorado, mas há um mês está fora de casa, internado em uma clínica de reabilitação para dependentes químicos. Foi a terceira vez, só no mesmo mês. Com os olhos tristes, Josiane nos conta que o crack fez o marido largar o emprego numa distribuidora da cidade e vender coisas de casa para sustentar o vício.
Para ela, o trabalho temporário representa um ofício. Como nunca trabalhou formalmente, a moça não tem currículo e a falta de experiência, nesse caso, pode se tornar a primeira barreira. “Antes eu ficava em casa sem fazer nada, como sou conhecida da mulher do ex-prefeito, ela ajeitou essa vaga aqui pra mim. Está bom, mas quando acabar eu vou voltar a ficar em casa o dia todo”, desabafa.
E no fim, quem ganha…
Antônia e Josiane configuram dois exemplos da imagem dos “novos ativistas”. A militância dos ‘bandeiraços’ teve o propósito alterado pela necessidade. Os vínculos políticos, nesse caso, estão aquém da identificação natural com as propostas apresentadas pelos candidatos. O resultado, a curto prazo, faz com que sejam eleitos os mais poderosos, os que compõem acordos com as grandes empresas. Isso faz com que o critério da democracia seja sempre baseado no ditado adaptado: “não ganha mais quem gasta menos”.
Andressa Figueiredo e Felipe Azevedo são estudantes de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA)