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Um garoto negro, despido, com pernas amarradas e a boca amordaçada é chicoteado, seu corpo se contrai de dor a cada gesto. Essa cena aconteceu no ano de 2019 e circulou pelas redes sociais, divulgada pelos próprios responsáveis – dois seguranças do supermercado Ricoy, na Zona Sul de São Paulo. A vítima era um garoto de 17 anos que foi pego furtando quatro barras de chocolate; os seguranças perseguiram o jovem e o levaram até o depósito de mercadoria da loja, onde ele foi chicoteado com fios de eletricidade durante 40 minutos.
Este episódio foi mais um caso de tortura em supermercados que veio à tona neste ano: em fevereiro, um rapaz de 19 anos morreu depois de ser sufocado por mais de sete minutos por um segurança no supermercado Extra, no Rio de Janeiro. Sete meses depois, outro vídeo mostra um homem negro amordaçado com as calças abaixadas enquanto recebe choques elétricos na extremidade do corpo de um segurança do Extra, em uma unidade de São Paulo.
O crime de tortura é previsto na lei 9.455 de 1997 e é entendido como o ato de constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental. A pena de reclusão é de 2 a 8 anos.
Dois dias depois do vídeo do supermercado Ricoy vir à tona, um outro vídeo mostra um segurança do mesmo estabelecimento torturando psicologicamente uma criança que supostamente tentava furtar a loja: “Você vai ficar lá em uma cela cheio de moleques da sua idade, ou mais velho, têm uns lá que gostam de abusar de outro moleque. Olha que legal. Têm uns que vão te dar uma surra bem dada. Olha que legal. É bom que lá você vai aprender a roubar, vai ser ‘daora’. Você não tem uma irmãzinha? Vai ficar sem ela. Você é ladrão”.
A KRP Zeladoria Valente Patrimonial, empresa responsável pela segurança dos supermercados Ricoy, não possui autorização da Polícia Federal, órgão que regulamenta e fiscaliza o setor. Seu sócio é um tenente-coronel aposentado, Cláudio Geromim Valente.
Em todos os casos, os seguranças são contratados por uma empresa de segurança privada terceirizada – o que levanta questões sobre a responsabilidade das redes de supermercado e do treinamento desses funcionários.
Para o sociólogo André Zanetic, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o maior problema do setor está nas mãos de empresas clandestinas, que não contemplam nem o mínimo previsto em lei quanto ao treinamento de seus vigilantes.
A Polícia Federal estima que essas empresas somam um número maior do que as regularizadas – para cada profissional autorizado, existem três que trabalham no setor clandestino da segurança privada.
Para obter a Carteira Nacional de Vigilante (CNV), emitida pela Polícia Federal, é preciso passar por um treinamento obrigatório em um curso de formação para vigilantes e seguranças patrimoniais, que incluem aulas sobre direitos humanos e uma grade de mais de 200 horas. Além disso, os requisitos para atuar no setor incluem ser brasileiro, maior de 21 anos e não possuir antecedentes criminais.
“O curso, apesar de ainda insuficiente para garantir uma boa formação para esses agentes, ao menos permite a existência de um mínimo de aprendizado que objetiva proteger o cidadão. O maior problema do setor está na existência do setor clandestino, que não contempla nem este mínimo que é previsto em lei. Há menor ou nenhum controle em outros pontos, como nas contratações, o que inclui a inexistência de testes cruciais como a aptidão psicológica”, comenta Zanetic.
Panorama da segurança privada no Brasil
Segundo dados do Estudo do Setor da Segurança Privada elaborado pela Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores (Fenavist), o número de empresas de segurança privada no Brasil saltou de 1.491 em 2010 para 2.694 em 2018 – um aumento de 80,6%. O faturamento do setor no ano passado foi de R$ 33,7 bilhões.
Atualmente, o Brasil tem mais seguranças privados – 553 mil trabalhadores – do que policiais militares – 480 mil. 90,3% dos trabalhadores do setor são homens, 69,9% com ensino médio completo e com a faixa salarial média de R$ 2.139. Muitos são policiais exonerados ou policiais que atuam no setor privado para complementar a renda.
Por lei, seguranças privados têm tanta prerrogativa para coibir um delito quanto outros cidadãos – portanto, se houver algum flagrante, a polícia deve ser acionada. Estes casos não são isolados e nos revelam a perpetuação da violência na segurança privada no Brasil, permeada por um senso de punitivismo arraigado no histórico brasileiro.
“Tem uma permissibilidade cultural, desde sempre, voltada para corpos negros. Tolerância zero, maltrata mesmo ‘para dar exemplo’, para que no bairro todo mundo saiba que naquele supermercado não se rouba. São policiais ou ex-policiais, às vezes expulsos da Força”, comenta Henrique Apolinário, da ONG Conectas Direitos Humanos.
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Larah Camargo é graduanda em Comunicação Social – Midialogia na UNICAMP e bolsista PIBIC – CNPq.