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Gabi Trindade
A cidade é um tema bem recorrente no cinema por causa do vínculo intrínseco que o homem tem com o meio e por esse meio, desde a consolidação do cinema na transição do século XIX pro século XX, ser majoritariamente o espaço urbano. O cinema nasceu retratando a cidade, ainda que de uma forma bem minimalista e sutil com A chegada de um trem a Ciotat dos pioneiros Lumiére; industrializou-se com a criação de estúdios que reproduziam cidades até que as cidades abarcaram os estúdios como parte delas, que é o caso da fantástica Cinecittà italiana e a afamada Hollywood.
Uma expressão artística que surgiu no auge do desenvolvimento moderno não tem como fugir de retratar o berço inerente da modernidade, que é a metrópole. Sem contar a questão do #paraque e #paraquem: a sétima arte se desenvolveu graças a recursos industriais de reprodução, logo, era direcionada para as massas. E onde é que estavam as massas? Na cidade.
Uma reflexão bem propícia para uma expressão artística surgida no contexto industrial, tecnicista, funcionalista, capitalista, blablablista é: pra que serve essa porra? Qual o papel das produções cinematográficas que enfocam cidades e culturas específicas em um mundo globalizado? De que maneira o cinema tem contribuído para a manutenção, transformação e subversão de estereótipos e clichês sobre estas cidades e seus habitantes? Confrontando, batendo de frente, sambando na cara dos estigmas. Em terra de informação hegemônica quem tem autenticidade é rei. Se a maioria dos conceitos e ideias propagadas são vetorizados para favorecer as instituições e aquela minoria que está na ponta do iceberg social, avalie o que eles fazem para influenciar nas nossas conclusões a respeito da maior representação institucional que é a cidade. O cinema – e a arte em geral – é o que se tem pra dar voz, ainda que às vezes sem intuito político panfletário, às percepções genuínas a respeito do espaço urbano.
O mais massa da relação cinema-cidade é que o cinema não é e nem tem a pretensão de ser um registro do real (nem mesmo o documentário), é na verdade uma interpretação, tipo uma representação subjetiva do olhar do realizador diante da cidade que está sendo retratada. Uma cidade não é só uma cidade, é milhões de cidades, é a quantidade de olhares que já pousaram nela em cada variação temporal. Existe uma Roma pro Fellini, uma Roma pro Antonioni e uma Roma pro Pasolini. Existe uma Paris pro Godard, uma pro Truffaut e outra pro Bresson. Existe uma Fortaleza pro Rosemberg Cariry, uma pro meio-cearese-meio-francês Karim e outra pro Pedrinho Diógenes.
O meu fascínio pelo tema parte de alguém que teve as quase-duas-décadas-e-meia de vida fragmentada em três capitais brasileiras bem distintas, portanto não tem raízes nem sentimentos territorialistas e aprendeu a sentir, distinguir e estimar a cidade através do olhar. Compilar as múltiplas percepções sobre algo que supostamente é concreto, ferro, surdo e cego e provar que o espaço urbano é bem mais delicado, peculiar e orgânico do que a planta desenhada na Prefeitura é uma missão que o cinema recebeu e tá se garantindo em cumprir.
Sinfonias Urbanas
“Berlim, a Sinfonia da Metrópole” e “O Homem com uma Câmera” são dois classicões da década de 20 do século passado. Nessa época tava super em voga os temas urbanos e as brincadeiras revolucionárias com as montagens dos filmes atribuindo uma estética ritmada às produções.
Os soviéticos como Eisenstein e Kuleshov começaram a propagar a brincadeira e a coisa pegou. Os respectivos diretores, Walter Ruttmann e Dziga Vertov deram o gás na brincadeira de montar. As imagens autoexplicativas que dispensam os letreiros-narradores provocando a máxima experiência audiovisual, a superexploração da montagem para criar uma ideia constante de movimento no filme e o ritmo repetitivo, linear e uniforme desse movimento alude à onda industrial que absorvia todo ser urbano da época – e isso está presente em ambos os filmes. A discrepância mais nítida que existe entre os dois é na linearidade da narrativa em relação ao tempo e espaço. Enquanto que o Ruttman da sinfonia berlinense se incumbiu de registrar documentalmente uma Berlim que amanhece e segue o fluxo natural e cronológico da narrativa até o anoitecer da cidade, o Vertov chegou quebrando tudo: tiro, porrada e bomba. Os paradigmas cinematográficos conhecidos até então foram pro espaço.
Vertov afirmou o cinema como linguagem singular, desvinculada dos paradigmas romanceados do teatro e da literatura. Tacou Efeito Kuleshov neles, que é uma técnica de montagem que justapõe imagens para criar um significado, quebrando assim a linearidade da narrativa onde não existem tempos e espaços conseguintes nem historinhas a serem contadas, só sensações e significados a serem jorrados através da montagem magistral e experimental que resultou esse filme. A busca pela sensação da cidade soviética ao invés do registro foi tão autêntica, que não existe uma cidade sendo retratada, mas sim uma amálgama de várias cidades que foram filmadas e formaram na montagem tipo uma entidade simbólica da cidade soviética moderna. Foi tipo um “não estou aqui pra mostrar o que é a cidade, estou aqui pra fazer você sentir a cidade”. Pancada!
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Fartozalê
Juro que não tô sendo paga pela Alumbramento pra falar sobre esses dois filmes realizados por membros da produtora, mas é que, coincidentemente (ou não, né), os dois são muito massa no mesmo patamar de qualidade e contendo diferenças nas óticas, estéticas e direcionamentos documentais sobre a mesma cidade. Sábado à Noite, do Ivo Lopes, e Retrato de uma Paisagem, do Pedro Diógenes, são filmes contemporâneos e conterrâneos que retratam as ruas alencarinas com peculiaridade e personalidade merecedoras de atenção.
Como era de se esperar de um filme realizado por um dos diretores de fotografia mais pancadas do país, Sábado à Noite é um filme de imagens. Um mosaico que se propõe através de fragmentos contemplativos a revelar Fortaleza em um sábado à noite, um sábado atípico, um sábado que sai da rodoviária e não sabe pra onde vai e nem qual espécie de sábado será.
Em planos longos, fixos e em sua maioria abertos, a câmera se coloca como observadora sem interação direta com o ocorrido, em condição plena e restrita de contempladora – algumas vezes chegando a sugerir que o que ocorre, ocorre para ser contemplado. Mas ao contrário do que aparenta pela descrição, o filme não tem uma estética asséptica e entediante. É cheio de pertinentes ruídos tantos sonoros como visuais (como nas marcantes luzes estouradas que acompanham o filme inteiro) e intercalado por planos feitos numa câmera bastante inquieta que se move abruptamente e por vezes assumindo a cadência do movimento do carro ou do voo dos pombos.
Uma sequência sensacional do filme é onde o Ivo faz uma parada parecida com a do Efeito Kuleshov de sugerir uma impressão através dos recursos da montagem, mas com o áudio! Primeiro rola um plano longuíssimo do Danilo Carvalho fazendo a captação de som na passarela da Washington Soares tipicamente repleta de barulho de carros, depois tudo escurece e o som mantém. Enquanto a tela tá escura, naturalmente somos induzidos a aludir o som que rola ao som da avenida barulhenta que há pouco estava sendo registrada quando repentinamente a tela abre e BUMBA! O plano que aparece é de um marzão com o mesmo áudio que rolava enquanto a tela tava escura e aparentemente o mesmo da Washington Soares. A similaridade entre o som do mar e da avenida é incrível. A ruptura, a transição de um áudio para o outro é imperceptível, pondo em xeque a nossa propriedade a respeito da paisagem sonora da nossa cidade.
Sábado à Noite talvez seja difícil de digerir por ter outra proposta de filme documental urbano que difere das mais acessíveis visualmente, sonoramente e verbalmente. Existe uma captação fragmentária de texturas muito latente ao invés de um contexto naturalista de imagens coerentemente correlacionadas e didáticas. A apresentação verbal das situações é nula. É um filme essencialmente de atmosferas urbanas. Parafraseando Manoel de Barros: as coisas não são vistas por uma câmera razoável.
Já Retrato de uma Paisagem se contrapõe ao Sábado à Noite pela câmera que se move incessantemente em sincronia com o discurso verbal que é predominante. Outra característica divergente é a utilização do dispositivo ficcional que interfere no decorrer rotineiro do espaço, que é o personagem que eu carinhosamente nominei como alienígena. O filme se propõe a analisar o espaço urbano em duas partes narrativamente conseguintes: a primeira é a do distanciamento e a segunda é a da imersão. Começa com uma câmera área passando pelo rio Cocó, espaço ainda “virgem” e destoante das características da metrópole até que numa transição gradativa o plano selvagem dá parto ao filme urbano. O teórico alienígena que está pousando em Fortaleza e que não adentrou ainda no universo do objeto a ser estudado vai proferindo suas constatações com um discurso cheio das pompas acadêmicas* quanto ao espaço urbano.
O discurso prossegue ilustrado com imagens condizentes acompanhando a câmera que desce registrando o itinerário do pouso do alienígena que finalmente aterrissa no caótico centro da cidade que estava sendo introduzido no campo teórico e que agora será vivenciado no campo pragmático. A cena em que o “alienígena” finalmente aparece em terra firme é muito foda e anunciativa de quem é e pra quê veio o personagem: espera o sinal abrir, o sinal abre e ele, ao invés de atravessar na faixa de pedestre, sequer atravessa e afirma seu comportamento oblíquo no espaço urbano indo em direção aos carros, desviando deles. O filme tá aí pra isso: questionar o decoro urbano.
O tema conduz o filme verbalmente enquanto o alienígena entrevista os trabalhadores do centro sobre questões pessoais à metafísica e imageticamente quando o alienígena intervém na cidade de uma forma estranha, anti-convencional, não segue o fluxo, não se mistura nem se ofusca nas massas e despreocupadamente lambe a parede de um banco em greve, atravessa pra direção errada, profere para uma criança que “a intervenção maciça dos interessados mudaria a situação”, ou se mete no meio de uma marchinha na Praça do Ferreira. A análise do ser urbano em O Retrato de uma Paisagem cumpre todas as etapas dialéticas desde a tese do Lefebvre, passando pela antítese do alienígena que analisa em posição neutra e ingênua as concepções e contradições das pessoas entrevistadas e provoca uma intervenção pragmática na organização convencional do objeto atiçando o estranhamento do ser comum, até que finalmente a síntese retorna a Lefebvre concluindo que “o ser humano só habita como poeta” e finda com o Belchior que conclama o homem comum que sangra e conhece o seu lugar enquanto planos fotográficos de cada singular homem-comum-poeta vão se sucedendo.
Passei alguns meses na noia desse filme refletindo sobre as inúmeras possibilidades de utilização que o espaço fornece e como a poesia do olhar, do usar e do ocupar esses espaços é castrada diante de uma lógica urbana de transeuntes vetorizados e de uma filosofia de vida pasteurizada e dogmática. Essa pasteurização do comportamento do ser urbano é o que limita a poesia. Retomo Manoel de Barros: é preciso transver o mundo.
*O discurso é tirado do livro A Revolução Urbana, do Henri Lefebvre. Livro muito massa e super recomendo também.
[vimeo 71754704 w=500 h=281]
Sábado à Noite from Alumbramento Filmes on Vimeo.
[vimeo 71632409 w=500 h=281]
RETRATO DE UMA PAISAGEM from Alumbramento Filmes on Vimeo.
Gabi Trindade é meio pernambucana, meio cearense, faz meio jornalismo e meio audiovisual