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(Foto acima: Arquivo DN/ demais: reprodução da internet – autores não citados)
Por Augusto Azevedo
Existe uma tríade de poetas do rock brasileiro constituída pelo baiano Raul Seixas, pelo carioca Cazuza e pelo carioca-candango Renato Russo, que é tida por muitos como o que houve de melhor no rock nacional nos últimos anos. Sabe-se que estes fazem imensa falta, entre outras questões, por sepultarem um período em que a indústria cultural de certa maneira precisava de um produto musical que fosse agressivo e doce ao mesmo tempo, com letras bem trabalhadas, voltadas à expressão e ao questionamento, seja de ordem íntima ou coletiva. Embora o ramo fosse rock cantado em português, estes três poetas sempre apresentaram obras bem distintas do que se fazia na época; apesar da sintonia, que pode ser observada na coloquialidade de suas letras, que desenvolvem narrativas das mais abrangentes, eles sempre foram autorais. É fato que o baiano, assim como o candango, realizou versões de narrativas de outros artistas, outros escritores, outros pensadores, mas o que para alguns é plágio, para muitos é genialidade.
O certo é que estes poetas têm algo em comum muito forte no que diz respeito às suas obras, suas respectivas discografias, no caso, os últimos álbuns lançados pelos roqueiros ainda em vida: A Panela do Diabo (1989), do Raul, Burguesia (1989), do Cazuza e A Tempestade ou o Livro dos Dias (1996), da Legião Urbana. Talvez não passe de mera coincidência cheirando a tenebrosos temporais, mas suas obras de despedida apresentam familiaridades, quase que cabulosas, que considero importante recordar.
A tentativa de separar a arte da vida é uma maneira mesquinha de negar a si mesmo, de retirar do ser humano a sua necessidade de inventar, desinventar, interpretar, interagir com seu meio, com a natureza. Os poetas mencionados não estavam mesmo nada bem na gravação de seus últimos discos, que para a infelicidade de muita gente anunciam suas prematuras partidas. Seria incondizente que suas últimas obras não fossem carregadas dos sentimentos que os permeavam naqueles momentos de dor, aflição e de plena certeza da chegada da morte. É… realmente a vida não é feita apenas de alegrias e satisfações, o lado ruim de nossa existência muita vezes toma o lugar das coisas boas que vivemos, expondo nossas amarguras e fragilidades. Tanto Raul, Cazuza e Renato ousaram em suas obras de despedida compartilhar de suas angústias, medos, não aceitação da mortalidade; foram tão profundos que para muitos de seus fãs essas são suas melhores obras, justamente por serem as mais viscerais, sensíveis, humanas. Não se pode jamais ignorar os relatos de sofrimento nos bastidores das gravações destes discos, seus autores foram além da própria condição física e psicológica e presentearam seus admiradores com ótimos discos, que marcam o final de um período que ressalto como muito especial na cultura brasileira.
Liso batendo, como se fala, passando por várias privações, que implicaram em sérias complicações no seu quadro clínico, Raulzito, convoca seu parceiro, Marcelo Nova, então ex-vocalista da excelente banda, precursora do hardcore no Brasil, Camisa de Vênus, para a gravação de um novo disco. O estado do Raul não era nada legal, estava abatido, nitidamente inchado, assim como se pode conferir em Burguesia e na A Tempestade, em que as vozes do Cazuza e do Renato, pelo menos em algumas faixas estão tristemente distintas do que se era acostumado a escutar. Raul canta neste disco de modo arrastado e com certeza em busca de solução para este problema resolveu fazer um disco em dueto, algo que nunca tinha feito na mais que brilhante carreira, mas que foi executado de modo maravilhoso; A Panela do Diabo seria um disco estranho se não tivesse a participação vocal do Marcelo Nova. O álbum é introduzido com a clássica Be-Bop-A-Lula, de Gene Vincent e Bill Sheriff Tex Davis, em seguida rola a aclamada Rock and Roll – o negócio é rockão antigo – em que Raul presta algumas contas com a cultura não só do Brasil; pulando algumas faixas encontramos a divertidíssima e profundamente crítica Pastor João e Igreja Invisível e ainda podemos ouvir neste álbum Nuit e Best Seller, estas, na minha opinião, embora sejam músicas bem ritmadas com algumas influências do Raul e do Marcelo, são as faixas mais leves, já que as demais expõem com intensidade a situação à qual não só o Raul passava, mas o parceiro Marcelo, que participou da composição de quase todas as faixas do disco, se encontrava, vendo um parceiro definhar.
A Panela do Diabo se revela como uma produção madura e declaradamente carregada de tristeza; pois é nem só de farras e orgasmos múltiplos se leva a vida. A Panela do Diabo teve uma turnê no Brasil, em que, por conta do estado de Raul Seixas, até hoje Marcelo Nova, uma espécie de produtor da turnê, é acusado de ter depreciado a saúde do parceiro mais ainda, como se o Marcelo fosse o culpado do declínio físico do parceiro, e como se o Raul fizesse algo que de fato não concordasse. Otário acho que todos sabem que ele nunca foi.
Também no ano de 1989, segundo consta entre os meses de março e maio desse ano, Agenor de Miranda Araujo Neto, também conhecido como Cazuza, gravava o seu último disco – Por Aí é o último álbum oficial da discografia do Cazuza, lançado em 1991 – Burguesia, álbum duplo, maduro, mostra um Cazuza apaixonado pela vida, mas sem deixar de fazer seus devidos questionamentos. Muito abatido pelo agravamento do HIV e sofrendo as consequências de um tratamento equivocado, o poeta gravou algumas faixas sentado em uma cadeira de rodas, apoiado em amigos e profissionais do estúdio, até uma cama foi levada ao estúdio. É interessante lembrar que somada à debilidade física e psicológica que o vírus da AIDS impõe, nessa época, anos 80, período marcado pelo surgimento e disseminação do HIV, tê-lo ou mesmo sofrer o desenvolvimento da doença, causava danos sociais e morais, alimentados pela posição homofóbica de tratar a AIDS como uma doença restrita a homossexuais, a instituindo inclusive como câncer ou peste gay. Uma das ações mais repugnantes direcionadas a Cazuza foi o responsabilizar pela morte do ator Lauro Corona, disparado um dos maiores galãs da tevê brasileira na década de 80, morto em decorrência do HIV, em que Cazuza, seu provável primo, o teria contaminado. Muita gente até hoje acredita nessa história, o fato é que nem primos eles eram.
Enquanto Cazuza se abatia, assim como outras pessoas por conta deste vírus, muitas pessoas prestavam sua condenação, demonstrando o alívio da perda de um artista que devido às circunstâncias até a Rede Globo tinha que engolir. Alguns desses reacionários que condenavam pessoas como Cazuza estavam infectadas por tal vírus.
Burguesia é um discão, repleto de músicas que se tornaram clássicas, como a biográfica Nabucodonosor e as bem alegres Garota de Bauru e Baby Lonest. Cazuza, que participou efetivamente da produção do disco, ainda implementa clássicos da música popular brasileira, como Preconceito, de Antonio Maria e Fernando Lobo, além de juntamente com Lobão – antes da loucura -, homenagear o grande músico e poeta Cartola na faixa Azul e Amarelo, implementando dois versos da música Autonomia, de autoria deste, dividindo os créditos da faixa com o sambista. Apesar de ser um álbum duplo Burguesia não é um disco longo ou mesmo enfadonho, pode-se viajar em todas as faixas, apreciando a liberdade de criação e produção que sempre foram marcas do Cazuza. Entretanto, devo admitir, apesar da alegria de algumas faixas, Burguesia é um álbum triste, péssimo pra ser ouvido em situações de depressão. Canções como Cobaias de Deus, em parceira com a Ângela Rô Rô e Quase um Segundo, esta última de autoria de Herbert Viana, expressam o clima de revolta e angústia que deveria pairar sobre a cabeça do poeta; mas seria uma insensibilidade da minha parte falar sobre este álbum sem falar sobre a faixa que dá seu título.
Cazuza era tido por muitos como o eterno boyzão, filho de João Araújo, grande produtor, que lançou no mercado fonográfico nomes como Os Novos Baianos, chefe maior da Som Livre, gravadora das organizações Globo, mas o poeta já tinha dado uma bela resposta em seu álbum Ideologia, de 1988, empreendendo críticas contundentes ao modo de vida da sociedade contemporânea, mas na faixa Burguesia do álbum que leva o mesmo nome ele bota pra voar as bandas de lata, realizando uma leitura sociológica do sentido de existência da classe burguesa, desempenhando uma autocrítica, que claro, não cabia somente a ele e nos lembrando da perniciosidade desta classe: “ a burguesia é a direita, é a guerra”.
Raul e Cazuza partiram em pouco espaço de tempo gerando um baque em tudo que era de muito doida e muito doido do país. Raul se foi em 27 de agosto de 1989; Cazuza finalmente descansou em 07 de julho de 1990 – ou seja, em pouco menos de 1 ano os fãs de rock se despediam na marra de dois grandes ídolos, que tanto abrilhantaram com irreverência e inteligência a vida no Brasil, tão comprometida com as exigências de mercado, assim como outros processos de continuidade da ditadura -que acabara oficialmente há meia década – para depois de mais outra meia década ver Renato Russo “ir embora cedo demais”.
As pessoas que não conhecem a Legião Urbana ou mesmo aquelas que escutaram a banda por meio de coletâneas podem ficar surpresas ao se depararem com um fã desta banda e este afirmar que o seu álbum preferido da Legião é A Tempestade. Sim, este último disco da Legião lançado com o Renatão em vida – em 1997 foi lançado o disco da Legião, Uma Outra Estação, que também é do caralho – é um dos prediletos de muitos fãs. Para mim dos álbuns em destaque A Tempestade ou o Livro dos Dias chega a ser o mais triste, mas com certeza não é pela melancolia expressa em algumas letras, ou em quase todas as faixas do disco, que muitos dos seguidores da Legião escolheram-no como o melhor disco da banda. Reflexão causa consciência – e consciência, em tese, causa dor. A Tempestade é um dos discos mais reflexivos, não só de rock and roll, mas de tudo que é música que já escutei; assim como nos outros álbuns da Legião Urbana, Renato Russo entrega ao público letras penetrantes e liricamente ricas, porém em A Tempestade parece que a dose de revolta introspectiva foi elevada e o desespero surge como inexorável caminho para o fim, o desespero da dor da paixão mal resolvida em Longe do Meu Lado, ou mesmo a desesperada ação de se jogar no cotidiano da pessoa amada, deixando esta se jogar na sua vida, combatendo a rotina com a satisfação do querer estar por perto, por exemplo, vista na perfeita Leila, que deus, ou seja, João Gilberto, ainda há de gravar. Corre a notícia que a voz distinta do Renatão em A Tempestade ou Livro dos Dias não se deu apenas pela debilidade referente a seu estado físico e psicológico, mas também pelo fato de todas as faixas, exceto A Via Láctea, terem sido gravadas a partir da voz-guia, diferenciando definitivamente os vocais deste disco dos demais álbuns da Legião.
Renatão, que já tinha rasgado toda a alma configurada em versos no seu segundo álbum solo, Equilíbrio Distante, 1995, também exigiu que nenhuma foto dele fosse tirada durante o processo de gravação e edição d´A Tempestade, utilizando fotos do próprio Equilíbrio Distante. Eram outros tempos, internet só no sonho, ou nas residências mais abonadas e, diferente do que ocorreu com Cazuza, a imprensa não fez tanto alarde quanto à debilidade do poeta candango, mesmo assim os fãs, fanáticos como fãs do Iron Maden, U2 e The Smiths, davam um jeito de se manterem informados da situação de seu ídolo; os rumores de que ele se encontrava trancafiado num apartamento, sozinho, com medicação suspensa, afligia não somente os seguidores da Legião e sim todas as pessoas sensíveis à contribuição do Renato à arte brasileira e aqueles que não consideravam digno o definhamento de alguém por conta duma doença traiçoeira, cruel e tão escrota como a AIDS, que já tinha roubado a vida de um monte de gente legal.
“Hoje a tristeza não é passageira, hoje fiquei com febre a tarde inteira e quando chegará à noite, cada estrela se parecerá uma lágrima”
Manter-se frio diante de tal narração não era tarefa simples. Quando ele se foi, 11 de outubro de 1996, a tristeza da perda se somou à melancolia inerente àquele último disco, tragédia. A Legião Urbana já carregava certa responsabilidade pelo fato de acompanhar despedidas, o disco V, meu preferido, diga-se de passagem, foi encontrado em cenários de suicídio, sendo o último disco de uma vida inteira a ser escutado; muitas letras do disco V, ou trechos dessas foram identificadas em cartas de adeus de pessoas que davam cabo de si. Renato detestava essa conotação, que para ele ofuscava uma grande obra, fruto de um trabalho feito com mais liberdade artística que os demais, com seus parceiros, Dado Vila-Lobos e Marcelo Bonfã mais maduros enquanto músicos. Uma das familiaridades que encontro entre o disco V e A Tempestade ou o Livros dos Dias está justamente relacionada à maturidade artística dos parceiros do Renato, que conseguiram no disco de 1996, assim como no V, de 1991, projetar um peso sonoro em assíduo diálogo com o peso da poesia empregada por Renato Russo.
Os poetas partiram, mas jamais irão embora. Deixaram discografias intrigantes, repletas de opiniões sobre o mundo, sendo intimamente abrangentes, pondo decisões certas em discussão, debatendo o absurdo.
A Panela do Diabo, Burguesia e A Tempestade são três ótimos álbuns, que fazem justiça com a obra de seus autores. Quando penso nesses discos penso em generosidade, os caras literalmente estavam morrendo e mesmo assim, em vez de se poupar para conhecer o desconhecido, que em todos os três casos, era eminente, dedicaram seu últimos dias na ampliação de suas obras. Será que estes álbuns foram feitos por eles, para eles, por mera satisfação pessoal? Acredito que não e lendo os demais trabalhos destes artistas dá para encontrar várias outras demonstrações de generosidade.
Obrigado poetas, a vida seria bem mais ridícula se não fosse as suas poesias, suas canções, seus risos e choros. Vocês serão sempre eternos para quem já chegou próximo de vocês por meio de suas contribuições à arte, à vida. Viva Raulzito, Viva Cazuza, Viva Renato Russo!
Augusto Azevedo é empreendedor da área de Organizações Sociais, atualmente se encontra envolvido em estudos sobre aproveitamento de recursos hídricos com Peter Brabeck-Letmathe