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Uma das mais conhecidas cartunistas brasileiras. Da geração dos anos 70, viveu a ditadura de perto, participou de vários projetos daquela turma sonhadora que resistia ao regime militar. Criou diversos personagens que se tornaram bastante conhecidos, como Os Piratas do Tietê, Overman, O Gato e a Gata, a série O Condomínio, entre outros. Publicou diversos livros, incluindo coletâneas com charges e cartuns. Escreveu peças e foi roteirista de programas de tevê, colaborou com O Pasquim e, junto com Glauco e Angeli, formou um trio que fez sucesso nos quadrinhos brasileiros: Los 3 Amigos (Laerton, Glauquito e Angel Vila). Atualmente, publica charges na Folha de São Paulo e apresenta o programa Transando com Laerte, no Canal Brasil. Ufa!
Há alguns anos assumiu a transgeneridade e já deu incontáveis entrevistas sobre o assunto. A Berro, pra variar, também abordou o tema na conversa com a artista. Suas palavras são afiadas e seu senso crítico é pra lá de aguçado. Confira! Boa leitura!
A Berro bebe muito da fonte pasquiniana. O Pasquim, para nós, é referência, como ícone de anarquia, de escracho, de humor contundente que marcou uma época. Como você, tendo sido colaboradora, vê a atuação do semanário carioca naquele momento político difícil que o país passava?
As publicações são frutos do seu contexto. O Pasquim tentou se refundar várias vezes, mas o momento, as ideias, as pessoas, tudo era diferente.
E será que não tá faltando hoje no Brasil um Pasquim não, hein?
O fato de ter existido um Pasquim naquela época não autoriza a pensar que falte “um Pasquim” hoje.
Por quê?
Há muitas ideias em circulação, em papel, na internet, nas mídias. Talvez não tão marcantes, mas os tempos mudaram também. Não há uma ditadura, não há mais a concepção de bem e mal, ou há, mas de um modo mais escorregadio. Havia naquela anarquia alguns elementos que soam ridículos hoje, como o culto à boemia, ao alcoolismo, à heterossexualidade, não?
Sim, sim, soam bastante descontextualizados e anacrônicos. Mas, mudando aqui de assunto, um passeio de quinze minutos no centro da cidade é o suficiente pra gente lembrar o que nos faz amar e odiar uma metrópole como Fortaleza. Todo machista querendo dar uma de estilista, comentando o tamanho das roupas femininas. Esse assunto no Brasil é intrínseco à história do país. A mulata da Globo anualmente é colocada como objeto sexual que referencia a mulher negra, mas todo mundo vê como normal. Você acha que isso pode ser trabalhado na sociedade?
“Trabalhado” é bom… faz pensar num esquadrão de boas consciências que “trabalham” as mentes decaídas. Questões como essa vêm sendo trabalhadas desde o século 19, pelo feminismo. Nada está parado, está?
Não, nada está parado. Mas as coisas precisam mudar mais rápido, talvez. Ainda abordando a emissora carioca e a televisão em geral, na sua obra, Laerte, existe também a participação como roteirista em alguns programas da TV Globo, né? Então, como você vê a influência na estigmatização da mulher, do homossexual e do negro pela tevê aberta brasileira?
Se esta é uma acusação velada, desvelemo-la. Eu escrevi para o Sai de Baixo — programa que foi apontado várias vezes como fonte de ridicularização da mulher, no caso da personagem Magda; de linguagem humilhante sobre a pobreza, no caso da personagem Caco Antibes; de estigma quanto à população originária do Norte e Nordeste, caso da personagem Ribamar. Não tinha negro e veado, mas podia ter.
Não sei se lamento ter escrito o que escrevi. Não sei se aceitaria escrever de novo. Minha relação com o que se entende por “humor” mudou bastante e não se reduz a fórmulas de procedimento respeitoso. Não sei se é possível reduzi-la a alguma coisa….
Além de remunerar e dar uma certa visibilidade ao seu trabalho, você vê algum outro benefício ou aprendizado como artista nessa experiência na Globo?
Remunerar remunerou — não deu visibilidade porque eu fazia parte de uma das muitas redações. Se eu não contasse para as pessoas que redigia para Sai de Baixo ou TV Colosso, ninguém saberia. Os créditos passam em velocidade, ninguém lê.
Sim, houve muitas lições que aprendi, principalmente vindas do Cláudio Paiva. Ele me ajudou a entender a dinâmica da produção para tevê, as muitas possibilidades da linguagem, as diferenças sutis e não tão sutis em relação à mídia impressa.
Hummm… certo! Trocando aqui o assunto mais uma vez, o que você considera mais importante no fazer artístico?
Essa pergunta é surrealista, não?
Não, não achamos não. Mas, tentando refazer a pergunta pra ficar mais claro: a expressão artística é talvez a forma mais autêntica de colocarmos nossa opinião, nosso berro sobre várias questões…
Por que a expressão artística é a forma “mais autêntica” de colocar opinião? E o discurso científico? E a construção sociológica, antropológica, religiosa?
Pois é, por isso colocamos o “talvez”, que faz toda a diferença. Hehehe! Mas, continuando a pergunta, você já criou muitos personagens, e há mais de dez anos resolveu aposentá-los, não é verdade? Por que decidiu parar com eles? Acabou a paciência, a criatividade ou a vontade em fazê-los?
Meus personagens. Parei de trabalhar com eles porque senti ter completado um ciclo de vida.
Trabalhar com personagens — ou com fórmulas de roteiro como as que eu usava para construir as tiras e histórias — me pareceu um recurso sem vida, em determinado momento. Por isso decidi fazer essa mudança geral. É preciso sempre dizer que esse movimento foi totalmente pessoal e intransferível. A avaliação dos processos de criação só pode ser feita pela pessoa que cria.
Enfim, parei de fazer por sentir que não havia mais sentido para mim continuar naquele procedimento — repito que isto é absolutamente pessoal e intransferível. Não se aplica a qualquer outra pessoa criadora de humor ou tiras a não ser pelo julgamento dela própria. No mesmo movimento, resolvi retomar certos procedimentos que havia deixado pra trás quando me profissionalizei. A profissionalização é um endurecimento, um auto-enquadramento em nome da eficiência profissional. No meu caso, achei que devia recuperar algo da liberdade com que criava aos 19, 20 anos de idade.
Ainda com relação aos personagens, o Grafiteiro, nas suas “oficinas de educação sexual”, geralmente laça as mulheres com uma corda e tem comportamentos marcadamente machistas e fetichistas em relação ao sexo. Numa das tirinhas, ele laça a mulher, e tendo-a presa à corda, diz que educação sexual é tirar-lhe a roupa e depois ela ainda tem que dizer “obrigada”. Para alguém que, como você, sofre horrores com a opressão machista, soa bastante contraditória a tirinha. Sabemos que ela foi desenhada num outro momento de sua vida, mas, vendo-a hoje, você tem algum arrependimento de ter feito HQs assim, bem machistas?
Sinto na pergunta uma crítica, que recebo com respeito e deferência.
Mas ela de fato é uma crítica!
Sou uma pessoa muito contraditória — como várias outras pessoas, tidas como saudáveis. Talvez vocês mesmos sejam contraditórios, considerando um percurso profissional de 40 e tantos anos, não?
Estamos só começando, engatinhando… mas a gente também é contraditório. É normal viver as contradições.
Talvez seja quase normal, hein? Talvez eu nem precise me autoflagelar em praça pública, hein? A não ser que peçam e paguem bem. Não me “arrependo”, mas tenho uma visão crítica do que fiz. Provavelmente eu não faria de novo nada do que já fiz.
Massa! Vivendo e aprendendo. Nós da Berro ainda temos muuuito o que aprender. Mudando aqui de assunto: numa entrevista a um blog de um desses jornalões da mídia empresarial, você reitera, citando Hugo Possolo, que “pode fazer piada de qualquer coisa, o que importa é saber de que lado da piada você está“. A gente te pergunta, então: o humor pode tudo, Laerte?
A criação pode tudo, claro.
Até mesmo reproduzir, reforçar e sustentar preconceitos e opressões?
Até isso que vocês mencionam. O que tem é que ouvir, depois. O que não pode é censurar, antes.
Se você prestar atenção no que o Hugo disse — que a questão é saber de que lado da piada você está — vai entender que é possível tocar em qualquer tema sem “reproduzir, reforçar e sustentar preconceitos e opressões”. A não ser que você, enquanto autor ou autora, esteja interessada exatamente nesse objetivo, o que não é crime. E nesse caso não adianta nenhum tipo de regulamentação da linguagem, não adianta censurar. Para discursos que violem as leis, deve haver um Judiciário adequado.
“Um Judiciário adequado”? Esse é um dos problemas. Enfim, noutra entrevista que você deu sobre o atentado ao Charlie Hebdo (jornal satírico francês que teve sua redação invadida e assassinada por fanáticos extremistas), você diz que os cartunistas franceses do semanário fazem coisas que os brasileiros não fariam, como desenhar Maomé pelado de quatro com estrela no cu. A gente pensa que o humor deve ter esse componente agressivo, mas até que ponto desenhar o profeta sagrado dos muçulmanos daquela forma não se perde na construção desse propósito de contundência?
“Não se perde na construção desse propósito de contundência”. Nossa, vocês se perderam nesse propósito de pergunta.
É verdade, tá com muita firula. Sem rodeios, a pergunta é: nesse contexto específico, qual o limiar entre o humor e o reforço à opressão a grupos historicamente oprimidos (gays, transgêneros, mulheres, negros, etc.)?
Não há limiar. O discurso da comicidade é necessariamente agressivo. Não há como não sê-lo. Ao mesmo tempo, não goza de imunidade parlamentar, precisa responder pelo que afirma ou reforça ou apregoa ou elege. Aí, repito, entra a necessidade de um Judiciário eficiente, na defesa de pessoas oprimidas e prejudicadas.
“Judiciário eficiente” é muito “cidadão de bem”, né não? Mas enfim, muitos justificam as charges do Charlie Hebdo que satirizavam Maomé dizendo que eles também faziam desenhos jocosos de personagens e dogmas sagrados para cristãos e judaicos. Em que medida esse “sair atirando para todo lado” concretamente serve ao humor?
Em que medida não serve? Lá em cima vocês mesmos fazem o elogio do Pasquim, justamente daquele que “é referência, como ícone de anarquia, de escracho, de humor contundente”. Isso não rima com atirar pra todo lado?
Pois é, são as nossas contradições vindo à tona… Muitos humoristas de décadas passadas são pessimistas em relação à qualidade do humor atualmente. Parte da sociedade questiona os limites do tema. Como você enxerga o fazer humorístico na atualidade?
Eu não estou preocupada com os limites do humor. Estou preocupada com os horizontes dele, se me permitem uma figura retórica meio romântica. O fazer humorístico continua a todo vapor, na rede, no papel, na vida.
E quais as principais diferenças que você percebe hoje em relação à época em que começou a trabalhar o tema com seu traço?
A época em que comecei a trabalhar se caracterizava pela ideia de que existe o mal — a ditadura e seus apoiadores — e o bem — todo o resto. Naquela época era tudo mais fácil, simples e sumário. Demorou pra cair a ficha.
Ainda sobre a ditadura, em 1974, você ganhou o prêmio do primeiro Salão Internacional de Humor de Piracicaba com uma charge que remetia às torturas sofridas naquela época, né?
As pessoas que falam com leveza sobre tortura não foram torturadas nem têm ouvidos para quem o foi.
Essa inversão de valores e concepções do personagem remete a um certo medo da tortura, mas hoje vemos uma inversão de valores generalizada pelas pessoas, inclusive ilustrado por um discurso estigmatizado sobre quem “merece” ser torturado. Você, por ter vivido nessas duas épocas, pode falar de algumas distinções entre essa parcela de pessoas que era/é a favor da tortura nesses dois momentos?
Gente que pede intervenção militar ou que acha que tem que “descer o pau em bandido” não vê o outro, não enxerga a humanidade do outro. A tortura continua no Brasil, diariamente, sobre pessoas que não despertam a comoção da população. A ideia de uma cultura de direitos humanos ainda está bem longe, segundo penso.
Tirando agora o peso do tema, e falando de algo leve, nessa nova safra de quadrinistas brasileiras(os), qual aquela(e) ou aquelas(es) que você bota fé?
O Rafael Coutinho é o meu paradigma de nova geração.
O que há de diferente e inovador no trabalho dele?
Ele tem um trabalho original, forte e que frequenta e inventa possibilidades de uso de mídia que a minha geração nem sonhava. Há muitos nomes; cito apenas o Rafael porque é um dos melhores, porque tenho receio de não citar pessoas que deveria e porque ele é meu filho.
Isso tá com cara de nepotismo nos quadrinhos. Hahahaha! Brincadeirinha! Com relação à sua escolha pelo travestismo, que começou a ocorrer mais ou menos há cerca de dez anos, você já deu centenas de entrevistas falando como foi o processo, o conflito interno, etc.
Dei centenas de entrevistas mas ainda tenho que ouvir “escolha pelo travestismo”. Que cansaço.
Eita mah! Foi mal aí! Mas, voltando à pergunta, o Jung, com seu conceito de anima, explica parte desse comportamento, embora não necessariamente a energia feminina que todo homem possui resvale para o cross-dressing, para a bi ou para a homossexualidade.
Jung deve ter chutado bonito, li muito superficialmente o que ele pensava, muita gente chutou à vontade, mas é quase impossível explicar de uma forma só a transgeneridade. Quanto à homossexualidade, não tem necessariamente conexão com o desejo de pertencer a outro gênero. São coisas diferentes, que se articulam, mas são autônomas: o sexo biológico, a orientação sexual e a chamada identidade de gênero.
A verdade é que não deve ter sido nada fácil optar por esse estilo de vida. À parte o preconceito e o estranhamento social – que vêm em larga medida, qual o berro que você dá ao assumir-se enquanto transgênero, Laerte?
Acho que não dou berro, não. Sou quietinha.
Berrar é bem facim ó: bééé! Mas ainda sobre o assunto, o Brasil é o país do mundo que mais mata pessoas pelo fato destas serem assumidamente homossexuais.
Não só “assumidamente homossexuais”. Matam transgêneros também. Pessoas que “parecem” homossexuais ou transgêneros, também. Pessoas que parecem remotamente essas categorias também.
Sim, sim, claro. Você fundou a ABRAT (Associação Brasileira de Transgêneros), que luta para combater essas estatísticas de horror. Analisando nosso cenário, você consegue enxergar luz no fim do túnel para essa questão num país tão conservador e machista como o nosso?
Somos um país difícil, mas acho que as coisas estão mudando. Parece estranho falar em coisas mudando quando o número de mortes com motivação homotransfóbica ainda é tão alto, mas há conquistas significativas em todos os lugares, que não dizem respeito só a pessoas com algum tipo de destaque; devem beneficiar, a algum prazo, a população LGBT como um todo. Acho que a medida em que essas mudanças se consolidarão vai ser dada pela compreensão de toda a sociedade do caráter universal dos direitos que reivindicamos. Ao contrário do discurso cruel do moralismo e do conservadorismo, não se está buscando nenhum tipo de privilégio, mas sim um avanço real no gozo nacional dos direitos civis.
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*Entrevista publicada na Revista Berro – Ano 02 – Edição 04 – Julho/Agosto 2015 (a seguir, versão PDF).