0 Comentários
“Sem este objetivo firme e permanente [de conhecer o interior inóspito] (…), a Amazônia, mais cedo ou mais tarde, se destacará do Brasil, naturalmente e irresistivelmente, como se despega um mundo de uma nebulosa — pela expansão centrífuga do seu próprio movimento.”
Euclides da Cunha, 1907
Em 1904, Euclides da Cunha foi nomeado chefe de uma missão diplomática Brasil-Peru. O objetivo era estabelecer um mapa hidrográfico das cabeceiras do rio Purus, a respeito das quais lutavam entre si os caucheiros peruanos e os seringueiros brasileiros. No decurso dessa expedição de um ano, da Cunha esteve sujeito a episódios de spleen, fadiga e melancolia. Se sentia esmagado por essas grandes extensões de floresta de cor verde monótono, engolido por esse ambiente sensorial sufocante. Evocou um “inferno verde”. De acordo com suas ideias socialistas, era sensível à condição dos trabalhadores da floresta, explorados pelos barões da borracha. Finalmente, Euclides chegou a uma conclusão firme.
Em face da cobiça internacional, e tendo em conta o caráter imensamente rico e praticamente desconhecido da Amazônia, é necessária uma gestão transnacional da floresta. Seguramente, o escritor estava influenciado pelo espírito cosmopolita da Belle Époque. Porém, é surpreendente constatar a atualidade dessas proposições. Mais de um século depois, a Amazônia continua a atrair empresas cuja sede de lucro é tão forte como sua falta de preocupações ambientais e sociais, a estar no centro de conflitos diplomáticos, e a ser em grande parte desconhecida.
Hoje em dia, os conflitos diplomáticos ultrapassam o âmbito latino-americano. Há várias décadas, a comunidade internacional multiplica as advertências ao governo brasileiro em matéria de respeito pelo ambiente. O pessoal político e os meios conservadores indignam-se; evocam uma ingerência inaceitável para um estado soberano. E isso é mais antigo que a chegada à presidência de Jair Bolsonaro. Dois temas dominavam os discursos conservadores sobre alterações climáticas no final dos anos 1990 e início dos anos 2000: a impossibilidade de controlar o desmatamento e um sentimento de ameaça contra a soberania nacional resultante das advertências internacionais. Assim, contrariamente ao Brasil, outros países com grandes superfícies florestais como o Canadá, a Rússia, a Colômbia e o Peru, aceitaram a inclusão das florestas no Protocolo de Kyoto. A falta de recursos e a corrupção endêmica do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) são bem documentadas, assim como a ingerência do poder executivo em projetos que violam as leis ambientais como a hidrelétrica de Belo Monte.
Porém, é vão falar de atentados à soberania no caso do meio ambiente. Para retomar as palavras de Euclides da Cunha, quer queiramos quer não, a Amazônia já se destacou do Brasil. É, inevitavelmente, uma questão internacional.
///
Referências
Drummond Câmara, João Batista (2013), “Governança Ambiental no Brasil: Ecos do Passado”, Revista de Sociologia e Política, vol. 21, n°46, pp. 125-146.
Fonteles Filho, Paulo (2013), “Euclides da Cunha e a internacionalização da Amazônia”, Vermelho. URL: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=1&id_noticia=222858.
Hecht, Susanna B. (2004), “The Last Unfinished Page of Genesis: Euclides da Cunha and the Amazon”, Historical Geography, vol. 32, pp. 43-69.
McAllister, Lesley K. (2008), Making Law Matter: Environmental Protection and Legal Institutions in Brazil, Stanford: Stanford University Press.
Ribeiro, Fabríco Leonardo (2006), “Cartas da selva: algumas impressões de Euclides da Cunha acerca da Amazônia”, História: Questões & Debates, n°44, pp. 147-162.
Viola, Eduardo (2002), “O regime internacional de mudança climatica e o Brasil”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 50, pp. 25-46.
Viola, Eduardo e Mathias Francini (2012), “Climate Politics in Brazil: Public Awareness, Social Transformations and Emissions Reduction” in Ian Bailey e Hugh Compston (eds.), Feeling the Heat: The Politics of Climate Policy in Rapidly Industrializing Countries, Londres: Palgrave Macmillan.
Autora
Coline Ferrant é doutora em sociologia (Sciences Po, Northwestern University).