Entrevista Zaccone: “Criminalização da pobreza é redundância” (parte III)



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(Foto: Joana Borges)

Zaccone fala sobre os programas policiais e sobre o seu conceito de criminalização, inclusive dando uma cutucada nas contradições das esquerdas brasileiras. Ah, e num momento de descontração da entrevista, conversamos até sobre futebol…

João Ernesto: A apropriação do senso comum pelos programas de televisão é uma espécie de tática de audiência. Nos programas policiais, a gente vê esse discurso que induz à violência, um discurso violento, mas muita gente pensa que… aqui, pelo menos, tem a questão de muitas casas na hora do almoço estarem vendo televisão e comumente verem cenas violentas até com crianças. Você pode falar que tipo de papel esses programas policiais desempenham? Você já deve ter sido citado em vários programas policiais no Rio de Janeiro, né?

Zaccone: Depende do espectador. Cê sabe que uma vez já tinha tido ocupação da UPPs no Rio de Janeiro, na Cidade de Deus, e eu tenho uns amigos que são da APA Funk (Associação dos Profissionais Amigos do Funk) e eles me convidaram pra assistir a uma apresentação que eles fariam dentro de um espaço na Cidade de Deus. Eu fui, cheguei cedo e aí tinha um bar próximo do local onde ia rolar a apresentação e eu fui e tava passando um desses programas. Acho que era do Wagner Montes, lá do Rio. E aí eu conversando com a dona do bar, falei: e aí, vocês todo dia assistem esses programas? E ela: “claro! a gente assiste pra ver notícias nas favelas, nós assistimos pra saber quem são os bandidos que tão nas favelas, o que tá acontecendo nas comunidades”… Se nós formos observar o espaço de visibilidade que a favela tem e que o morador da favela tem é pro noticiário criminal, né.

Então acho que pro morador da favela, que acompanha esses programas, não é um olhar que você tem em outros ambientes e setores da sociedade, o olhar que tem pra esses programas por parte de alguns setores da sociedade é no sentido da construção do ódio, do inimigo, mas esse programa não é assistido só por essas pessoas, esse programa é assistido por moradores das comunidades, que dão audiência pra esses programas, né.

João Ernesto: Com certeza! Com certeza!

Zaccone: E aí entra a questão da visibilidade; infelizmente hoje no Brasil nós temos a chamada cidadania pela vitimização. Determinadas pessoas de um ambiente social só vão ter voz de cidadão se forem vítimas. Muitas vezes, esses programas apresentam inclusive pessoas vítimas de violência policial: quando acontece alguma coisa, algum desvio mais grave, eles dão espaço pros moradores falarem, mostram a favela, mas eles constroem a cultura de que o inimigo tem que ser exterminado. Então, depende de quem tá vendo o programa. É importante a gente entender que essa programação tem uma audiência muito alta das classes populares também.

“O discurso de apologia à violência policial é incorporado por parte da mídia, principalmente quando é dirigido para aqueles que são construídos como inimigos”

João Ernesto: Compreender o problema pra…

Zaccone: (interrompendo) É, agora têm certas coisas que realmente são inegáveis. O discurso de apologia à violência policial é incorporado por parte da mídia, principalmente quando é dirigido para aqueles que são construídos como inimigos, como grandes traficantes de drogas, aqueles de short, sem camisa, descalço…

Artur Pires: Bermudão da Smolder, né, hehe, o boné assim ó (explicando com um gesto de mãos onde ficaria o boné, na ponta da cabeça).

João Ernesto: (continua na construção do estereótipo) Aba reta! Hehehehe! (Zaconne ri, se apruma na cadeira e ajeita o seu boné na cabeça!)

Artur Pires: Eu queria falar sobre teu conceito de criminalização, né. Tu geralmente diz que as esquerdas precisam ser mais coerentes porque, de um lado, acham um absurdo e se levantam contra a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, né, mas por outro lado defendem com rigor e esbravejam pela criminalização da homofobia, Maria da Penha, né, assumindo esse mesmo discurso de ódio e vingança. Então, a gente queria que tu contextualizasse isso, de como tu vê essa questão?

Zaccone: É importante que a gente saiba o que é criminalização… a idéia de criminalização (nesse momento, Joana avisa que a bateria da câmera que estava fazendo a filmagem descarregou – e para ser gentil com o entrevistado, oferece-lhe um copo d´água. Enquanto Joana e Sarah aprumam a outra câmera para a gravação continuar, percebendo o momento relaxado na entrevista, Artur faz a convidativa pergunta a Zaconne: “vamos amanhã pro Pici, ver o jogo do Leão, o Tricolor?”. Mal terminou de fazer o convite e João soltou uma gargalhada gostosa, Sarah deu uma risada tímida e Joana, por ser torcedora alvinegra, fez sinal de negativo com o dedo para o delegado, como que dizendo para ele não ir. Trocaram mais alguns dedos de prosa sobre futebol; Zaconne dizia que seu Fluminense também já havia jogado a terceira divisão, onde o Fortaleza está agora. “Mas nós fomos campões, hein?”, disse ele, em tom de brincadeira. Foi então que Joana disse um “pronto” e nós retomamos a entrevista)

… muito se fala sobre criminalização da pobreza, criminalização dos movimentos sociais, mas a maioria das pessoas parece que não compreende corretamente o que é criminalização. O tema da criminalização vem ingressar nos debates criminológicos a partir da ideia de que o crime não está nem na natureza nem na lei. Porque até então a gente tratava com ideia de criminalidade. Criminalidade seria buscar uma existência ôntica do crime, na lei ou na natureza. Mas a partir do momento que entendemos que o crime é uma construção que se faz num ambiente social, e quando eu falo que 600 mil presos no Brasil estão presos em não mais que meia dúzia de crimes, isso mostra que o processo é de construção do crime e do criminoso. Porque delinquente vai ser aquele que vai ser identificado como tal. Uma pessoa pode cometer uma infinidade de crimes previstos em lei; se ele ainda não foi identificado como criminoso, ele pode ser uma referência, um senhor, um doutor. Então, o delinquente é aquele que é identificado como tal. E, no Brasil, a construção que se faz dele é em cima de alguns delitos.

Então, a criminalização é o processo de produção do crime e do criminoso através das atividades do sistema de justiça criminal. O sistema de justiça criminal e sua atividades, ao definir quem são aqueles que vão ser levados pro cárcere, define quem são os criminosos. Hoje, o que a gente escuta são os processos de criminalização, que definem por exemplo que os crimes mais perigosos na sociedade brasileira, por exemplo, são o roubo e o tráfico. Não tem ninguém preso no Brasil por lavagem de dinheiro, por sonegação fiscal, por aborto. E eu não tô dizendo que deveriam estar presos, né, mas a lei ainda prevê essas condutas como crimes. Então, o que nós temos que ver,né, é que a construção da delinquência se dá através de uma decisão política, que constrói quem são os criminosos e quais são os crimes que vão ser perseguidos. Portanto, criminalização é um processo político, né. Até uma vez perguntaram pro professor carioca Augusto Thompson, que já faleceu – ele foi um dos grandes criminólogos do Brasil, escreveu o livro Quem são os criminosos? -, qual era a diferença entre o criminoso político e o criminoso comum. Ele respondeu que a única diferença é que o preso político sabe que é político. O criminoso comum não sabe, mas ele também é preso político, porque ele é construído enquanto tal.

“o processo de criminalização é sempre seletivo, sempre vai atuar construindo o crime e o criminoso nos espaços mais vulneráveis, nos locais de pessoas mais pobres.”

Então, o processo de criminalização é sempre seletivo, sempre vai atuar construindo o crime e o criminoso nos espaços mais vulneráveis, nos locais de pessoas mais pobres. O cárcere está cheio de pessoas pobres não porque o pobre tem mais tendência a delinquir, está cheio de pobres porque o pobre tem mais tendência a ser criminalizado, né; as condutas praticadas pelos pobres têm mais chances de serem definidas como delitos e de levarem essas pessoas para a cadeia. Não é à toa que no tráfico de drogas toda a repressão se dá no varejo, porque quem é definido como traficante é o varejista.

Artur Pires: Os atacadistas dos helicópteros, né? (fazendo uma expressão com a cabeça e as mãos como quem diz “não dá em nada”).

Zaccone: Nada! As empresas que lavam… nada disso vai entrar no bolo. Então, se o processo de criminalização é sempre seletivo é até uma redundância a gente falar em criminalização da pobreza; se há criminalização, já está implícito que é da pobreza. Então, a construção social que se faz hoje, seja nas questões de ocupação de terras, seja nas manifestações, em definir esses ativistas como criminosos é o mesmo processo da construção do varejista das drogas. É o mesmo processo político que vai definindo aquelas pessoas como criminosas. E se uma pessoa é definida como criminosa não adianta ela gritar que não é.

“O cárcere está cheio de pessoas pobres não porque o pobre tem mais tendência a delinquir, está cheio de pobres porque o pobre tem mais tendência a ser criminalizado”

Então, em algum momento, os movimentos sociais no Brasil, principalmente aqueles com tradição de esquerda e mais próximos das políticas de direitos humanos, passaram a ter fé nos processos políticos de criminalização como algo que fosse solucionar as suas questões, né. No caso das mulheres, a violência de gênero era uma questão importante, então lei Maria da Penha, criminalização de homens agressores. Racismo, a mesma coisa. Pô, os negros sofrem preconceito, discriminação no ambiente social e como é que vamos resolver isso? Criminalização das práticas do racismo. Se discute hoje no movimento LGBT, como que vamos resolver a questão da discriminação de orientação sexual? Criminalização da homofobia!

Então, eles passam a contemplar que esses processos de criminalização vão garantir direitos. Mas esses processos sofrem a mesma realidade de qualquer processo de criminalização, então quem vai ser criminalizado no racismo são aqueles que estão operando as condutas na portaria de um clube, na portaria de um prédio, como segurança de um shopping. Quem é o segurança do shopping, quem é o porteiro do prédio, quem é porteiro do clube? Um negro. Então, tá cheio de negro aí processado por racismo porque cabe a ele realizar a conduta preconceituosa, porque ele tá na ponta mais frágil, né. A mesma coisa acontece com a lei Maria da Penha. Quem é que vai preso na lei Maria da Penha? É o homem pobre que agride a mulher no espaço público, geralmente embriagado, geralmente desempregado (berro do bode Berro: O classe-mediano que esmurra sua mulher num condomínio fechado ou numa festa jamais vai preso). Então, a lei leva pro cárcere uma centena de pessoas, pra não dizer milhares, que tão numa situação vulnerável no ambiente social e eles não são criminosos porque são pobres, eles são criminalizados porque são pobres.

“A cadeia virou um depósito de pessoas que têm que ser colocadas em algum lugar porque elas não podem mais ser contempladas no modelo econômico”

A função econômica do encarceramento, que se dá através do processo de criminalização, é que você tem que dar destino a essa massa de pessoas que não podem mais ser contempladas nesse sistema econômico. A cadeia virou um depósito de pessoas que têm que ser colocadas em algum lugar porque elas não podem mais ser contempladas no modelo econômico. Então, a função econômica do encarceramento em massa é simplesmente fazer a segregação dessa parcela que não vai poder participar porque esse modelo é excludente de uma parcela significativa da população, tanto de produtores como de consumidores. Então, o que fazer com essas pessoas? Aí a cadeia, o encarceramento em massa passa a ser o destino dessas pessoas, que cada vez mais é uma fatia maior da população.

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