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De início, preciso dizer que querer viver o amor da cabeça aos pés, assim como lindamente cantou Gal, em Dê um rolê, não é motivo pra se encabular. E, se ainda não consigo plenamente hoje, saliento que a busca por amor e liberdade é uma constante pra mim. Viver o amor de forma libertária! Porque, penso eu, concordando com o que disse Che em Obra revolucionária, ser revolucionário exige “grandes sentimentos de amor. É impossível pensar um revolucionário autêntico sem esta qualidade”. O mestre Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido, completa: “Não é devido à deterioração a que se submete a palavra amor no mundo capitalista que a revolução vá deixar de ser amorosa”. Digo mais: na atual sociedade do controle e da dominação quase total, amar é uma das virtudes mais preciosas que nos sobraram!
É preciso desfazer também, logo de cara, equívocos muito comuns quando se fala em amor livre, quando se usa essa expressão. O senso comum relaciona logo a três questões:
• primeiro, à promiscuidade. Nada a ver parte I. Pode-se amar livremente sem ser promíscuo, como pode-se amar livremente e ser promíscuo. Como, também, pode-se ser promíscuo sem amar livremente. O amor livre nada tem a ver com a promiscuidade – e vice-versa, porque, corroboro com o que diz Roberto Freire, em Utopia e Paixão, é impossível manter a liberação corporal se não lutamos para vencer as opressões invisíveis que controlam nossos corpos;
• segundo, à bi ou à homossexualidade. Nada a ver parte II. Está cheio de casais gays ou bissexuais, como também heterossexuais, que certamente não vivenciam o amor pleno, não o experimentam com liberdade, caem nas mesmas amarras morais, religiosas, sociais (patriarcais), culturais, político-econômicas… Ou seja, a liberdade no amor não é uma questão de gênero, orientação sexual ou coisa do tipo;
• terceiro, à poligamia. Nada a ver parte III. Não há essa relação direta entre amor livre e poligamia. Um casal pode amar-se tão livremente, tão verdadeiramente, tão espontaneamente, que escolhe, de maneira autêntica e autônoma, adotar uma relação exclusivista e monogâmica. Isso é possível, sim, claro, por uma construção social.
Agora, a posse dos corpos, ou melhor, a noção de apropriação dos corpos alheios não é natural, como alguns conceitos moralistas e religiosos tentam nos impor. “É dos mais parasitários e neuróticos o amor que leva uma pessoa a achar a outra um pedaço de si mesma”, diz Roberto Freire, em Utopia e Paixão. Então, se não é natural, não podemos também naturalizar a monogamia (“até que a morte os separe”) como única alternativa possível e viável para o amor. Enfim, o amor livre pode ser vivido numa relação monogâmica, como também numa poligâmica: não existe essa conversa de que uma é do bem e a outra é do mal. O que nos impede de enxergar isso, muitas vezes, é nossa capa moralista (com forte ranço religioso), historicamente construída, que nos cobre com preconceitos e “verdades absolutas”. E aí achamos que a noção de “amor romântico”, um romantismo eivado de autoritarismo patriarcal, é a única e absoluta forma de amar, quando na verdade ela é, de geração em geração, reensinada e reintrojetada em nosso imaginário coletivo por meio de uma pedagogia autoritária e castradora, na família, na escola, na religião, enfim, na sociedade como um todo.
Que fique bem claro: não estou aqui defendendo nenhuma maneira de amar como a certa ou a errada. Seria muita arrogância e, também, ignorância de minha parte dizer que um só caminho é possível. Cairia na mesma dicotomia e no mesmo maniqueísmo que abomino, daqueles que querem castrar e cercear o amor. Estou defendendo é que as formas de amar são múltiplas, amplas, de infinitas possibilidades, que não cabem em padrões homogeneizados, pasteurizados.
Cada pessoa envolvida é que vai decidir, de comum acordo com a outra (ou as outras!), baseada na dinâmica e na intensidade da relação, qual a opção que melhor lhes convém. A bem da verdade, o que importa mesmo nas relações amorosas, seja de casal, com os pais, com os(as) filhos(as), com os(as) irmãos(ãs), com os (as) amigos(as), são lealdade e cumplicidade. Mas, desde os primeiros anos de vida, a sociedade do espetáculo nos impõe autoritária e violentamente uma única forma para exercer o amor, com várias restrições.
Contudo, o amor nos é intrínseco, nascemos com ele, porque nos é dado espontaneamente pela Natureza. E ele, dessa forma, é inteiramente livre, sublime. No entanto, ao longo da marcha histórica da humanidade, principalmente no que diz respeito ao chamado “processo civilizatório”, o amor foi sendo enquadrado, moldado a estruturas religiosas, morais, político-econômicas, sociais (patriarcais) e culturais que lhe impuseram uma camisa-de-força. Hoje, na sociedade do consumo, o amor é padronizado como uma receita de bolo. Há passo a passo para “ensinar a arte” de amar, dicas e soluções mágicas para conquistar o amor ideal, autoajuda para os “segredos” do amor, entre outras esquisitices.
O conceito de amor para a sociedade contemporânea é cada vez mais restrito, com sérias limitações sociais e existenciais. É preciso reavivar o debate sobre a infinita condição de amar, sem as amarras invisíveis que tentam, a todo custo, sabotá-la. “Porque é um ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens. Mas, este compromisso, porque é amoroso, é dialógico”, falou Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido. Contudo, no contexto atual da sociedade, a dialética proveniente das relações amorosas, que enriquece e expande a consciência e o próprio amor, deu lugar à chantagem emocional; esta está institucionalizada, impera em todas as relações que podem vir a ser amorosas: fraternas, pais-filhos, filhos-pais, casais, educador(a)-educando(a), etc. Esse ato chantagista não é facilmente perceptível porque se esparrama em representações de afeto. É o dever para obter o prazer; a velha ideologia do sacrifício: para se conseguir vantagens (afetivas ou não) na relação, fazem-se joguinhos emocionais de ameaças, muitas vezes veladas, diluídas em carinhos, abraços, afagos: é a verdadeira imposição de condições (chantagens emocionais) para amar. Ao invés do diálogo, a chantagem!
Se refletirmos a fundo sobre essa questão, percebemos que, sim!, isso ocorre de verdade, inclusive nas nossas famílias, nos namoros e casamentos convencionais, nas relações no trabalho, na escola, na universidade, na religião, com nossas amigas e amigos, e independendo se rico ou pobre. Desde cedo, muito cedo, somos inseridos nessa lógica da chantagem emocional disfarçada de amor. Acompanhadas de expressões faciais ora ameaçadoras, ora afetivas (mas ainda assim autoritárias), frases como essas são rotineiras na sociedade contemporânea:
• na família: “se não fizer a tarefa, não vai passear” ou, pior ainda, “se desobedecer o papai e a mamãe, a gente vai gostar menos de você”; “seu pai – ou sua mãe – está fazendo isso porque te ama” (isso = alguma repressão à liberdade da criança, ou justificando um castigo ou umas palmadas); ou, quando já se é adolescente, “se não estudar, não vai para a festa no fim de semana, ou não empresto o carro” (no caso das famílias classe-medianas pra cima); ou entre irmãos: “se você fizer isso, vou contar pro papai e pra mamãe”, “se você não fizer isso pra mim, vou contar o que você fez naquele dia pro papai e pra mamãe”.
Em suma, mais que os castigos e as palmadas, o que marca decisivamente as relações familiares na sociedade contemporânea, seja na família rica ou na pobre, é a prática indiscriminada da chantagem emocional;
• na escola: “se não fizer a tarefa, não vai poder brincar no recreio”; “se não chegar na hora, não vai participar da excursão”, ou pior, “se não se comportar, vai ser convidado a se retirar da escola”, quando o “se comportar” significa obedecer passivamente às regras burocráticas e autoritárias da maioria das escolas;
• na religião: aqui, nesse caso, há diversas situações que retratam com perfeição a ideologia do sacrifício, o dever para obter o prazer, principalmente nas religiões islâmicas e judaico-cristãs. Nestas, é preciso respeitar e seguir um código de conduta disciplinador e autoritário, geralmente assentado em algum livro-base (Bíblia, Corão, Torá), para se alcançar “a graça, o reino do céu, o paraíso, a salvação”. Padres, pastores, rabinos e islamitas são especialistas na chantagem emocional, ainda que muitas vezes pensem que estão levando os fiéis para um “bom caminho”. Na verdade, estas religiões se ancoram desde sempre no jogo da chantagem emocional com a fé alheia;
• no namoro: “se você for presse lugar sem mim, já sabe, né?”, “tem mais nem tempo pra mim, só quer saber dos(as) amigos(as)”, bem como nas muitas outras chantagens que resultam do ciúme autoritário, do sentimento de posse e apropriação do corpo e da vida alheia, incorporado às dinâmicas das relações dos casais contemporâneos;
• nas relações fraternas, de amizade: “perdeu a história lá ó, foi massa; quem manda num aparecer mais, só quer saber dos(as) novos(as) amigos(as)”.
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Reparem: todas as situações retratadas ocorrem normalmente num sentido de disciplinar a pessoa chantageada, de controlar, moldar o chantageado. Muitas dessas situações são construídas de maneira disfarçadamente amorosas, envoltas em olhares “pidões” e palavras de carinho: são as chantagens emocionais travestidas de amor! Os próprios amigos, amantes, pais, filhos, religiosos, educadores e educandos assumem esse papel de chantagista sem, muitas vezes, dar-se conta. Muitos realizam as chantagens pensando – sinceramente! – que estão dando vazão ao amor! Pensam que amar é disciplinar, ou regular, ou controlar, ou impor condições. Confundem chantagem amorosa com amor! Pensam que o amor se dá como moeda de troca numa relação. Nããããoo, nunca!!! O amor é de graça, é livre, é dado espontaneamente, nunca na lógica de permuta!
É preciso fazer um movimento contrário quanto a isso. É preciso estar atento e forte para não cair nas armadilhas que vão tentar vestir uma camisa-de-força na sua maneira de amar. E quanto mais se amarra o amor, mais se estrangula a liberdade, porque os dois caminham juntos, de mãos dadas, alimentam-se um do outro, complementam-se mutuamente, se entrelaçam infinitamente. Quanto mais amor, mais asas à liberdade! E vice-versa! “Como ato de liberdade, não pode ser pretexto para a manipulação, senão gerador de outros atos de liberdade. A não ser assim, não é amor”, disse Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido.
Para finalizar, só quero dizer que, no meio de tudo isso, alheio às iniciativas inócuas de homogeneizá-lo, o amor continuará lá, aqui, acolá, aonde quer que seja, com sua áurea livre e bonita; rindo, com indisfarçável deboche, das tentativas estéreis de enquadrá-lo a um padrão de comportamento sócio-moral. O amor não tem limites nem receitas prontas, pois assim como a personagem da Morte em Moreira Campos, ele também é antiquíssimo, atual e eterno.
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*Publicado na Revista Berro – Ano 01 – Edição 02 – Agosto/Setembro 2014 (aqui, versão PDF)