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(Pulo da Ponte Velha, no Poço da Draga – Fotos: Revista Berro)
“… Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo…”
(O apanhador de desperdícios – Manoel de Barros)
Dia desses, logo após acordar com o canto dos bem-te-vis que diariamente vêm à minha janela, me divertia lendo as travessuras do Fradim. Estava na sala, rindo com as estripulias do personagem em quadrinhos do Henfil, quando um dos bem-te-vis do jardim adentrou sem cerimônia a casa e pousou sobre o móvel onde ficam alguns livros. Não sei o que procurava, mas não se alongou muito tempo. Mirou-me, soltou um sonoro e agudo “bem-te-viiiii” e voou para trepar-se na samambaia da varanda.
Vendo aquilo, larguei o Fradim sobre a mesa por um instante, e passei a divagar sobre a visita do pássaro. Por mais que tenha sido rápida, senti uma coisa boa com a presença daquele bicho ali, livre, dentro de casa. Ri tímido, feliz pela visita inesperada, troquei dois dedos de prosa comigo mesmo, naquela linguagem muda que todos trazemos conosco, e em seguida voltei os olhos à leitura: a essa altura o Fradim sofria com as danações do Baixim.
Noutro dia desses, choveu forte em Fortaleza. Passeava com o Bono, meu amigo-cachorro, quando o toró teve início. Nos protegemos embaixo de uma marquise, não sem antes tomar alguns pingos no rosto. Estava com o celular no bolso e supunha que, se me atrevesse a enfrentar aquela enxurrada, iria danificar o aparelho. Um, cinco, dez minutos… E nada do temporal passar. Comecei a pensar na maravilha que seria aquele banho de chuva; esta que parecia dançar com o vento forte que soprava as folhas do pé de azeitona.
– Preto, bora sair por aí na chuva correndo, bora?
Ele me olhou feliz e, na sua expressão, vi que ele disse “sim!” Não pensei duas vezes. Dane-se o celular!
– Então, bora, Preto, bora!
E saímos em disparada, rindo largamente os dois sob aquele temporal. Bono abria a bocarra para sentir a chuva tocando sua língua. Talvez estivesse com sede da caminhada pré-chuva. Me sentia ainda mais feliz com a euforia dele, que pulava de tanta alegria com aquele banho que caía do céu. Demos um longo e apertado abraço. Ele me olhava e eu via nas suas feições uma gratidão àquela demonstração de força da natureza! Cachorros – na verdade os bichos em geral – têm uma sensibilidade muito maior que a nossa para sentir essas coisas. Nós, que vivemos em cidades grandes, abdicamos do prazer de um banho de chuva. Muitas vezes, fugimos dela, como se fôssemos de açúcar. Eu e Bono passeamos bastante pelo bairro sob aquela enxurrada, depois fomos pra casa e brincamos de bola ainda com o toró troando.
Não satisfeito, peguei minha bike e saí, sozinho, a esmo, pelo bairro, caçando bicas e pedalando de braços abertos, como que pra receber de bom grado aquelas gotas volumosas que lavavam não só meu corpo. Gritava feito louco – “uhuuuuu” -, comemorava estar vivendo aquilo. Algumas bicas mais pareciam cachoeiras! Naquele dia, não tomei mais banho, porque realmente não quis; a água da Cagece não seria páreo para limpar mais do que a água da chuva.
Noutro dia desses, numa noite de lua cheia, junto com alguns amigos, fizemos uma trilha noturna às margens do rio Pacoti, que desemboca ali na praia da Cofeco, também conhecida como Abreulândia. Enfiamos o pé na lama do mangue, nos embiocamos mata adentro, subimos nas árvores do manguezal com seus galhos úmidos, escalamos dunas que nos proporcionavam vistas incríveis, nos banhamos no Pacoti ao tempo em que éramos banhados pela luz amarelada da lua, que espelhava seu dourado na superfície do rio… Toda a trilha em silêncio! Cada um com sua viagem! Mas sem perder de vista o viés tribal, de grupo, que nos unia fortemente naquele momento. Na volta, uma chuva torrencial nos presenteou com sua abundância.
Os três relatos são fatos muito simples, aos quais muitos dão de ombros, já não veem importância. Os olhos dos moradores das metrópoles se acostumaram a banalizar o simples. Tolos!, como se o simples fosse banal. Apegam-se às obviedades da aparência; preferem a vida de plástico e concreto: artificial! Não conseguem mais ver sopro de vida na simplicidade de um pôr-do-sol visto da duna da Sabiaguaba, donde se contempla todo o ecossistema do Cocó; de embrenhar-se no mangue da mesma Sabi, e depois banhar-se de rio ou de mar; de tomar um banho de mangueira no jardim de casa e, à luz do sol, brincar de fazer arco-íris com os jatos d´água; de admirar um beija-flor bicando um bouganville ou uma rolinha fazendo seu ninho no arbusto do quintal; de cultivar um jardim colorido e meter a mão na terra para plantar e acompanhar o crescimento dos brotos; de ir pular da ponte velha no Poço da Draga; de um banho de cachoeira; de um vento bom soprando sua brisa; de silenciar diante da natureza para ouvi-la…
Os habitantes dos grandes centros urbanos, com a correria frenética do dia-a-dia, perderam o contato com o simples da vida. Com aquilo que de sagrado todos trazemos conosco. Não o sagrado num sentido dogmático-religioso. Não é isso! Mas, sim, como a ligação profunda que todos nós, humanos, temos com o restante da natureza e seus elementos! “Quem experimenta a beleza está em comunhão com o sagrado”, disse Rubem Alves. Nem de longe isso é papo de bicho-grilo. Aos poucos, abandonou-se a lufada de bem-estar advinda da simplicidade. Mas ela, teimosa e resistente, continua em cada um! Isso não é pieguice, é uma busca: temos que inicialmente procurá-la dentro de nós para depois a captarmos no cotidiano. Nessas horas percebo o quanto ainda precisamos aprender com muitas das gentes simples e sábias do sertão e de etnias indígenas e aborígenes espalhadas por esse mundão.
Quando, generalizadamente – pobres, ricos, pretos e brancos -, percebermos que a verdadeira riqueza do nosso estar no mundo repousa numa vida simples, sem consumismo e sem apego às aparências, finalmente a utopia de uma humanidade igualitária estará ao nosso alcance. “É muito simples: o essencial é invisível aos olhos”, já disse a raposa ao Pequeno Príncipe.
…
Ah, naquele dia, da visita do bem-te-vi à minha sala, que falei no comecim desse texto, fui depois dar uma olhada nas plantas e a samambaia da varanda estava seca, sem umidade na sua terra, pedindo água. Devia ser isso o que o pássaro estava querendo me dizer!
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Adorei Artur!! 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽