0 Comentários
(Pintura: “Boemia”, de Julia Aumüller)
Por Rodrigo Novaes de Almeida
Era final de abril do ano de dois mil e dezesseis de Nosso Senhor. Estavam em um pé-sujo na rua atrás da universidade, nas imediações do Largo de São Francisco, Rio de Janeiro. Bebiam cerveja e comiam uma porção de linguiça calabresa acebolada. Uma prostituta já bastante velha tentava fazer comunicação visual com qualquer um dos dois. Tinha um puteiro rançoso sobre o bar, subindo uma escada estreita pela calçada. Ela estava do outro lado da rua encostada em um carro. Fumava. Usava um batom vermelho escarlate — “evidentemente”, pensou José, distraído, quando se deu conta de que encarava a prostituta velha de volta. Virou-se, então, para o amigo. A mulher ainda fez um gesto obsceno na direção deles, jogou a guimba no chão e passou a encarar alguns homens que passavam na rua.
— Não ouviu porra nenhuma do que eu disse. — Falou Leon.
— O que você disse? — Perguntou José.
— Eu disse que a única saída agora é a gente pegar em armas, porra.
— Armas?
— É, porra. O que há com você?
— Que armas, rapaz? Você pensa que vão fazer revolução com canivetes, facas de cozinha e estilingues? Porque quem tem armas de fogo no país é a direita.
— Tem razão. Mas, e agora?
— E agora? E agora? Vocês só sabem falar e agora?
— Tem que existir uma saída, porra.
— Tem.
— Tem o quê?
— Uma saída, porra.
— Qual? Para de fazer suspense! Diz, aí.
— A gente precisa derrubar o estatuto do desarmamento junto com os caras.
— O quê? Ficou maluco? Foi pra extrema-direita, Zé? Porra, eu estou bebendo com um filho da puta de um fascista aqui?
— Hein, relaxa, Leon. E não grita.
— Não grita? Olha a merda que você está falando.
— Cala a boca e escuta. Penso nisso há mais de uma década, desde que a esquerda chegou ao poder sentando à mesa pra conciliar com o capital.
— O que é, então? Fala…
— Se é pra fazer direito, que agora derrubem o estatuto do desarmamento de vez e armem e treinem cada sindicalista desse país, cada sem terra, cada sem teto, cada trabalhador consciente de classe. Que infiltrem camaradas na base das forças armadas e coloquem gente em posições estratégicas das polícias. Então que comecem a cortar cabeças. Banqueiro. Industrial. Empresário. Só pra começar.
José parou de falar. Leon olhava para o amigo sem nada dizer. Ficaram assim quase um minuto.
— Mas, claro, nada disso vai acontecer. — Disse, por fim, José.
— Claro, nada disso vai acontecer. — Repetiu Leon, soturno. — Vladimir, desce outra gelada aqui, por favor.
Ficaram sem falar mais alguns minutos. A prostituta continuava no mesmo lugar e fumava outro cigarro — “era o capitalismo decrépito”, pensou José. Foi Leon quem quebrou o silêncio dessa vez:
— Porra, Zé, você é perigoso pra caralho.
Rodrigo Novaes de Almeida é escritor e jornalista nascido no Rio de Janeiro, Brasil (1976). Autor de Rapsódias – Primeiras histórias breves (contos, 2009), Carnebruta (contos, 2012) e A construção da paisagem (crônicas, com Christiane Angelotti, 2012). Site: http://www.rodrigonovaesdealmeida.com/