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(Foto: Blog Quase Tudo Futebol)
Por Artur Pires
Sábado de manhã, início dos anos 2000. A noite anterior foi mal dormida. Ansiosos. Insoniosos. Acordaram cedo, encontraram-se pelas ruas e foram de magote ao terreno do Antônio Caixeira, na Cidade dos Funcionários. Limparam os matos que ainda restavam e prepararam os últimos detalhes para que o campo de piçarra ficasse em condições de sediar o torneio de futebol do bairro. Enxada e machadinho para a limpeza do matagal; martelo, madeira e prego para fazer as traves. Pronto! Agora estava tudo preparado para o certame mais comentado por aquelas bandas nos últimos meses.
Formaram-se seis times ao todo: o da pracinha; a “panelinha” da Rua Enfermeiro Joaquim Pinto; outro da Cezídio de Albuquerque – o time da rua de baixo, que fica às margens da BR-116; mais um time do Parque Iracema, bairro vizinho; e outros dois com jogadores que não estavam em nenhum dos “esquadrões” citados.
Mas e o prêmio do campeão?
– Não dá certo dinheiro não. Se não é arriscado a negada se matar aqui, cumpade! – disse um dos jogadores.
A maioria concordou. O jeito foi arrumar outra premiação. Outro dos participantes disparou:
– Um litrão, né não?
– Um litrão é muito pouco, dá nem pruma rodada completa. Tu sabe como é a galera aqui, né, maxo? Gosta quase nadinha da “Kátia”, né?
– Tá bom, três litrão, então! Fechou?
A discussão se prolongou um pouco. Alguns queriam uma caixa de cachaça, mas o dinheiro arrecadado com as inscrições dos times só dava para os três litros mesmo. O saudoso seu Zé Grande, morador histórico do bairro e que morava nas proximidades do terreno, ainda veio com um brinde:
– Tenho uma galinha bem gorda no quintal, que ia fazer amanhã no almoço. Mas vou dar ela pra vocês. O campeão leva a galinha.
Foi uma saraivada de gritos em comemoração. Daqueles bem cearenses. O torneio ia começar.
Sentados à beira da calçada, separados pela cerca de arame farpado que dividia o terreno da rua, os moradores prestigiavam o torneio, sem abrir mão da zombaria costumeira:
– Esse chutezim aí não quebra nem uma creme-crack molhada no leite – ao verem um chute fraco, sem força o suficiente.
– Olha o troco, vai pegar teu troco – quando um jogador levava um drible desconcertante.
– Vixiii, vai buscar teu pé na lua, maxo! – quando um jogador “furava” um chute.
– Bandeirantes, o canal do esporte – quando alguém chutava a bola muuuuito longe do gol e o jogo parava para que fossem buscá-la.
– Precisa tomar mais banho quando chegar em casa não, viu? – sempre que alguém levava um “banho de cuia” (para os “não-letrados” em futebol, a jogada descrita se refere a quando um jogador lança a bola por cima de outro e a alcança do outro lado).
Mas também aplaudiam, estimulavam, berravam a cada gol. Com o perdão do clichê, a torcida era um espetáculo à parte. Falando em à parte, os jogadores também tinham seus “truques” antes das partidas. Uns desciam até o terreno vizinho, sentavam-se em círculos, batiam papo. Quando voltavam, estavam mais tranquilos, sorridentes e com olhos avermelhados. Outros subiam a rua do terreno até a bodega da dona Dindô. Lá, entornavam doses generosas de cachaça. Quando juntavam mais de dois, interavam um burrim na certa! Nada disso atrapalhava o andamento do torneio. Na hora dos jogos dos seus times, todos estavam lá, a postos!
Por volta das 4 horas da tarde, a disputa tinha sua grande final: o time da praça, formado por Nielsen, William, Artur, Lubinha e Assis, enfrentaria o time da Enfermeiro, composto por Siri, Junim, Alceu, Cleandro e Marrom. Grande jogo! De virada, o time da pracinha venceu a decisão por 2 a 1. O torneio chegava ao fim, mas a comemoração apenas se iniciava.
Os campeões pegaram os três litros de cachaça, puseram a galinha embaixo do braço e levaram-na até a casa da Adriana, que já tinha garantido ainda durante o torneio que a mulher dela, Luciana, sabia matar e depenar a ovípara como ninguém. Ela, Adriana, se encarregaria de cozinhar a galinha ao molho. Huummmm!!!
A essa hora, já se aglomeravam na calçada quase todos os times, ansiosos pela galinha para tirar o gosto da pinga. Por enquanto, iam se virando com as bandinhas de limão que o Nielsen tinha ido buscar na sua casa, ali perto. Proseavam sem parar:
– Ei, mas naquela hora lá foi pênalti. Era pro Carneiro (o juiz) ter marcado!
– Tá é doido, é? Pênalti da onde? Nem encostei em tu, mah!
– Tu viu? Parece que a prefeitura vai reformar a pracinha?
– Cumpade, se botarem pelo menos uma grade ali atrás do gol pra bola não embarcar mais pra delegacia tá valendo.
– Que nada, rochedo também é se fizessem um pista de skate.
– Pois é, já fizeram pista de skate no Jardim, nas Cajazeiras, na Aerolândia e num fazem uma aqui. Béisso!
No meio da conversa solta, Adriana despontava na calçada com uma grande panela às mãos:
– Negada, a galinha tá pronta! Mas cuidado que tá quente!
Lubinha correu de prontidão para ajudá-la. Pegou a panela com cuidado e colocou-a no chão. Daí em diante, como num passe de mágica, os três litros de cachaça iniciais foram consumidos num relance.
– Bó comprar mais! Que ainda tem é muita galinha aí.
– Mas o Arnaldo e a Dindô já tão fechado. No Tancredo é bem baratim!
– Eu vou lá. Me empresta tua bike aí, negão?
– Vai lá! Tá aí!
Coçaram os bolsos e interaram mais dois litros. A essa altura, entornados três litros e outras coisitas na mente, a maioria já enrolava a língua e ria como se tivesse comendo, ao invés de galinha, carne de palhaço. Pouco tempo depois, Gugu voltou do Tancredo Neves com os dois litros embaixo do sovaco. Beberam tudo!
Mais tarde, alguns resistentes ainda foram à barraca do Marujo, na praça, tomar mais meio-litro, e escutar um Raul Seixas, um Sabotage ou um Racionais. Marujo também tinha um CD da Rebel Lion – do tempo do Canto dos Tribos – que fazia o maior sucesso com a galera!
No fim da noite, já na madrugada do domingo, foram para casa. Alguns aos empurrões, outros no piloto-automático. Mas chegaram felizes e salvos às suas residências.
O torneio da galinha tinha dado asas!
Hoje, o terreno do Caixeira, onde o campinho de terra foi construído, se “transformou” em três casas duplex, daquelas à moda dos padrões “gourmetizados”. Nos últimos 15 anos, a Cidade dos Funcionários tem enfrentado um processo predatório e agressivo de especulação imobiliária, no qual terrenos e estórias como essa cada vez mais dão lugar a casarões, concreto e solidão! Ainda assim, a resistência suburbana, na praça e em algumas ruas do bairro, permanece viva. Até quando?