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Nas redondezas do Castelão, cenas como essa, de lama, falta de saneamento e sujeira, são comuns (Fotos: Chico Célio)
Quando Fortaleza foi anunciada como uma das sedes da Copa do Mundo, ainda em 2009, os moradores do entorno do Castelão comemoraram, acreditando no “agora vai!”, que dali em diante as coisas naquela região iriam mudar; a infraestrutura básica chegaria, os investimentos públicos seriam destinados àquelas comunidades, enfim, muitos olhos estariam voltados àquele pedaço da cidade… Cinco anos depois, 2014, ficamos curiosos pra saber como andam as coisas por aquelas bandas: Castelão, Mata Galinha e Barroso.
“Lá por dentro eu não sei comé que tá não viu… nem imagino”, diz ironicamente e às gargalhadas dona Lúcia, quixadaense que mora há 23 anos no Boa Vista (a junção dos antigos bairros Castelão e Mata Galinha) – os moradores ainda batem o pé e continuam chamando de Castelão. A ironia brincalhona da natural de Quixadá revela nas entrelinhas que “lá por dentro”, por trás da Av. Paulino Rocha – uma das vias que dá acesso ao Castelão, a situação não é nada boa: infraestrutura precária, ruas com esgoto a céu aberto e muito lixo, além da violência gerada pelo tráfico de drogas, que ocorre silenciosamente nas vielas, mas que vez por outra faz suas vítimas à luz do dia.
– E policiamento, dona Lúcia, comé que é por aqui?
“A segurança é só pros de fora meu fi”, ressalta, com lamento e certa resignação. De fato, nos jogos da Copa no Castelão, o que se percebe é um aparato militar (Raio, Choque, Cotam, Gate, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Exército) fortemente armado e preparado para garantir que tudo ocorra nos conformes da Fifa. Sem o efeito “Copa pra gringo ver”, a região apresenta alta taxa de homicídios, associados principalmente às disputas pelo controle do mercado ilícito de drogas. Sobre o extermínio dos jovens da periferia, a Berro já abordou o assunto: “Quem se importa com os mortos da favela?“
Para piorar, nas partidas do torneio no estádio, dona Lúcia tem prejuízos no seu mercadinho, já que a barreira gradeada imposta pela Fifa impede que os torcedores cheguem até o seu estabelecimento. “Eles não deixam passar”, reclama ela. Sobre essas tais grades, Eliane Brum escreveu a respeito: “Comunidade pobre do Castelão assistiu à ‘elite’ desfilar”.
Corroborando com as palavras de dona Lúcia sobre a questão da segurança, seu Paulo Pinheiro, que mora há 25 anos ali do lado, no Barroso, desabafa que, em dia de jogo, quem tiver carro só pode sair de casa até seis horas antes das partidas e só pode voltar seis horas depois. “No último (Uruguai e Costa Rica – 14/06), minha esposa teve que levar meu comprovante de residência até a barreira policial pra eu poder ir pra casa”, diz ele, levantando as mãos e falando com grandes gestos, como que esperando a reação do repórter. Franzo a sobrancelha com cumplicidade enquanto anoto algumas observações. Completa: “Foram benfeitorias provisórias. Tá vendo esses jarros aí? (aponta para uns bem grandes no meio-fio da avenida, pintados de verde e amarelo) Não vão durar um mês. Foi um tremenda maquiagem que foi feita pra essa Copa”.
Ir e vir a pé? Só com autorização da Fifa!
“Melhorou assim, né, a gente vê mais polícia passando”, diz Mazé Oliveira, moradora do Castelão há 9 anos, fazendo um mais ou menos com as mãos, quando perguntada sobre a sensação de segurança por ali. Ela e sua mãe, Francy, têm um bar cerca de 50 metros da Arena. Mas não estão muito esperançosas que os investimentos para o bairro continuem após a Copa.
“Aqui ainda tem muita coisa a ser melhorada. Foi passada uma maquiagem, como dizem, né. Digamos assim, fizeram a maquiagem a dois quarteirões do estádio, porque mais pra lá (aponta para a área mais central do bairro), no começo do Cal (favela que fica às margens da Av. Paulino Rocha), só pra avenida que ficou bonito, porque mais pra dentro continua do mesmo jeito. Tem uma rua que é um esgoto a céu aberto bem aqui pertim”, denuncia Mazé.
– E como é em dia de jogo, eles impedem vocês de irem pro outro lado?
De acordo com a jovem, “um fornecedor nosso de salgado, que mora lá pra banda do Barroso, foi impedido de passar pro lado de cá. Agora, pessoas dizem que são impedidas de passar pra lá, mas até hoje não soube de nenhum morador que eu conheça que foi impedido de passar não”. Até então tímida, acompanhando a conversa num canto do bar, Francy não se contém e, nesse momento, fala levantando o dedo indicador: “Se não tiver o ingresso você não passa”.
Pois é, é isso mesmo: em favor de uma corporação mafio$a, o Estado brasileiro ajoelha-se e cede aos caprichos da toda-poderosa Fifa: em dia de jogo, só passa por ali quem ela quiser. O livre direito de ir e vir dos moradores da redondeza é interditado. Tem noção do que isso representa? Tem idéia do que é querer sair de casa, atravessar a rua pro outro quarteirão e ser impedido? A sociedade, ao cruzar os braços e dar de ombros pra tamanho absurdo, autoriza e legitima uma violência arbitrária a um direito básico, constitucional (se é que essa Constituição valha mesmo de alguma coisa). Está tudo errado. Estamos às avessas e pouca gente deu-se conta!
Por sua vez, Mazé sabe que nem todos os problemas do bairro foram trazidos pelo megaevento, mas tem ciência igualmente que o torneio não vai resolvê-los. Sobre os olhos da cidade estarem voltados àquela região pós-Copa, “eu creio que não vai continuar não”, diz ela, pressionando os lábios um no outro e balançando negativamente a cabeça. É muito provável – pra não dizer é sal – que, após o evento, Fortaleza como de costume voltará suas atenções ao Meireles, à Aldeota, ao Fátima, à Varjota, ao Cocó, à Beira-Mar, ao Mucuripe, ao Dionísio Torres, ao Dunas: é basicamente nesses bairros que o investimento urbano público e privado chega sem falta, é para esses oásis de concentração de riqueza que escoam as iniciativas e os gastos públicos.
Segundo levantamento recente da prefeitura, o Castelão tem um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixíssimo: 0,25 numa escala de 0 a 1. O Mata Galinha apresenta 0,31 – e o Barroso, bairro vizinho, tem índice miserável: 0,18; é o 107° entre os 119 bairros da capital cearense. Para se chegar ao IDH, são verificados fatores como educação, renda e expectativa de vida. Esse é o cenário de pobreza e descaso em volta dum estádio que custou R$ 518 milhões de reais.
Daqui um tempo, passado o torneio, os moradores do Barroso e do Boa Vista estarão seguindo a vida normalmente, em que pese as imensas dificuldades que a sociedade lhes apresenta, uns criando formas de resistência, outros resignando-se, mas todos com a lembrança vaga de que por um mês as atenções da cidade e, por que não dizer, de parte do mundo, estiveram voltadas àquela região. Infelizmente, não por causa deles, mas apesar deles.
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