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Valéria Pinheiro
Com a escolha do Brasil como sede da Copa 2014, se anunciou um espetáculo de produção das cidades-sede, que, com o megaevento, teriam sua imagem projetada mundialmente e teriam oportunizado um grande salto de desenvolvimento e progresso urbano, nunca dantes visto no país.
Um aparato institucional é redefinido – nos três níveis de governo, e às obras que constavam no compromisso com a Fifa foram acrescidos projetos de interesse dos governos, e ganharam absoluta prioridade. Alguns itens do plano de investimentos eram projetos antigos que foram desengavetados e outros eram “novidades”, escolhidos não se sabe a partir de que critérios de interesse público.
Prometia-se a ampliação da rede de transportes, modernização da infraestrutura e serviços, ações de segurança pública, etc., todos possibilitados por um majoritário financiamento privado, que serviriam para recebermos com orgulho os turistas durante o evento e ficariam como legado pra os moradores.
A realidade foi bem outra, como vimos. A despeito do clima de celebração esportiva e de congraçamento entre as nações que se instaurou no país, é preciso que se insista: Copa para quem? A que preço? Quem pagou a festa de poucos? Quais as consequências a longo prazo da vinda do megaevento para nosso país?
É importante registrar que estes questionamentos e críticas não são recentes. O Comitê Popular da Copa de Fortaleza, por exemplo, foi criado em setembro de 2009. E a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (ANCOP) data de 2010. Sim, desde o anúncio das cidades-sede há pessoas, articulações, coletivos, movimentos e setores da universidade que se posicionaram criticamente diante da euforia generalizada – críticas estas surpreendentemente reverberadas nos catárticos atos de rua de 2013.
A principal bandeira nestes anos de luta foi a resistência às ameaças de remoção de dezenas de milhares de famílias, ocasionadas notadamente por conta dos projetos de mobilidade urbana para a Copa da Fifa.
resistência às ameaças de remoção de dezenas de milhares de famílias, ocasionadas notadamente por conta dos projetos de mobilidade urbana para a Copa da Fifa.
A Copa do Mundo foi a desculpa perfeita para que os governos, aliados de primeira hora do capital imobiliário, acelerassem os processos de expulsão de comunidades pobres que ainda resistem em áreas infraestruturadas da cidade
O objetivo dos movimentos/moradores não era impedir as melhorias na cidade, como alguns mal-intencionados apregoam. É preciso um olhar mais apurado para os projetos em execução e para os lugares-alvo de remoção, para que se consiga vislumbrar quais os intentos de tais ações. A Copa do Mundo foi a desculpa perfeita para que os governos, aliados de primeira hora do capital imobiliário, acelerassem os processos de expulsão de comunidades pobres que ainda resistem em áreas infraestruturadas da cidade, mesmo que precariamente.
Em um levantamento da Secretaria de Finanças de Fortaleza, de 2011, tomamos conhecimento de que existem na cidade 1.500 terrenos vazios com mais de 10 mil m² e inutilizados há mais de 5 anos. Portanto, não é por falta de local adequado que não se realoca estas famílias de maneira digna. A pretensa disputa entre o direito à moradia das 5 mil unidades familiares ameaçadas de remoção em Fortaleza e o interesse público travestido nas obras de mobilidade é falsa. A disputa aqui é por um modelo de cidade. A expulsão das pessoas recebendo indenizações irrisórias ou sendo jogadas em um conjunto habitacional bem distante do seu local de origem reforça a tendência privatista, segregadora e violenta desse projeto de cidade.
A expulsão das pessoas recebendo indenizações irrisórias ou sendo jogadas em um conjunto habitacional bem distante do seu local de origem reforça a tendência privatista, segregadora e violenta desse projeto de cidade.
Conhecendo o projeto Copa em Fortaleza, fica clara a funcionalidade do mesmo no aumento da concentração de renda e da segregação socioespacial, à medida em que prioriza intervenções pontuais e fragmentadas em áreas comparativamente bem estruturadas da cidade.
Também precisamos ter o cuidado de não cair no_discurso oportunista de segmentos que se escandalizaram com a corrupção e o uso excessivo de recursos públicos na Copa, mas que na verdade são e sempre foram cúmplices e até mesmo protagonistas desse modo de fazer política, como os partidos de direita – os que ainda estão fora do governo – e a grande mídia.
O que questionamos é o modelo de desenvolvimento urbano que nos foi imposto, seletivo, predatório e violador de direitos, que, com a chegada da Copa em Fortaleza, foi acirrado e legitimado por conta da “paixão nacional”.
Acompanhando este processo, vivenciamos múltiplas violações de direitos. Precarização do trabalho formal, com tantas mortes nas obras; cerceamento ao trabalho informal; aumento da exploração sexual infantil; legislações de exceção que viram regra; privatização do espaço público; ameaça à soberania nacional, com os “territórios Fifa”; favorecimento financeiro aos parceiros Fifa, que tiveram centenas de milhões de impostos devidos isentos; militarização do aparato estatal; criminalização dos movimentos sociais e o fortalecimento de um aparato opressor que não teve absolutamente nenhum limite para perseguir, machucar, prender e até matar quem se colocou contra o evento.
Além disso tudo, destaco a absoluta falta de controle social do “Pacote Copa”, aqui em Fortaleza e nas outras 11 cidades-sede, desde sua definição como prioridades públicas, até sua execução. Não houve espaço para o contraditório, a proposição de alternativas, para a fiscalização e para a gestão democrática da cidade, mesmo que garantidos em lei. Apesar do desenvolvimento de estruturas de debate público sobre o desenvolvimento urbano nos últimos anos, estas foram alijadas, enfraquecidas e ignoradas por Prefeitura, Governo do Estado e Governo Federal.
Isso sim é um legado positivo: o reconhecimento e a reorganização de forças políticas e resistências populares nas cidades!
A cidade é o palco privilegiado das contradições políticas, econômicas e sociais. E é com a exasperação destas contradições surgidas com a Copa da Fifa, que surgem condições objetivas de acirramento das práticas reivindicativas dos setores que não foram/não estão sendo beneficiados com as grandes obras. Não podemos aceitar que este padrão de governança urbana se fortaleça e se perpetue no pós-Copa. A articulação de lutas históricas proporcionada nas plenárias dos Comitês Populares da Copa e de diversos movimentos parceiros não terminará em julho de 2014. Isso sim é um legado positivo: o reconhecimento e a reorganização de forças políticas e resistências populares nas cidades!
Valéria Pinheiro é membro do Comitê Popular da Copa e pesquisadora do Projeto Direito à Cidade (LEHAB-UFC)
*Texto publicado na Revista Berro – Ano 02 – Edição 02 – Agosto/Setembro 2014 (aqui, versão PDF)