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Epígrafe
Quando a Poesia me tomou
De assalto, dizendo-me:
– Mãos ao alto!… Passa a alma,
Senão eu atiro!…
Confesso que titubeei
Mediante tal fato bélico
De entregar-lhe tesouro
Tão caro e valioso.
Porém, entre o risco de morte
Nas mãos desta Onça das almas
E uma existência
Oca e sem espírito, supliquei-lhe
Diante de sua ameaçadora mira:
– Atira!…
Talvez seja tarde para se ler um poema
Talvez seja tarde para se ler um poema
Se a noite longínqua se devaneia ao se desguarnecer do luar e das estrelas
Em firmamento-fátuo como se dissolvessem as quimeras em pétalas escarlates
A despencarem-se em cadência, abatidas pela roca mímica do tempo
Como se emudecessem ao desgorjear-se em silêncio tácito
Por sobre o que não se deve calar os míticos abismos
Que se sobrepõem por opressão justaposta ao grito submergido por lassidão ou covardia que aprisiona a alma em cárceres impalpáveis
Quando a opressão se conjuga como se fosse hóstia proibida ao discernimento
Por sobre tíbio percurso de profanação do rugido cego e alienado Em gesto de sublimação mórbida e (holo)cáustica
Quando o Verbo se petrifica pela ignorância fatídica sobreposta à mesa
Dos vermes esfomeados e pútridos da república insana e súdita
Se o aforismo naufraga mediante o dilúvio cíclico da bestial insensatez
E do perjúrio ritmado e aplaudido pela plateia atônita e obstupefata
Quando a estupidez se oficializa para além-diálogo entre a voz premida e a ruidosa
Eloquência da iniquidade se adversa ao ímpeto de rouca liberdade
Se o colóquio promiscuiu-se em razão da sordidez do açoite que estala
No picadeiro da consciência da plebe incógnita e bestificada
Quando o vocábulo se coaduna ao degredo intelectual não havendo
Quem se submerja ao que se evapora feito água em fogão à lenha humana
Estapafu(r)gidiamente.
O consertador de palavras
A Manoel de Barros
Certa feita, o Homem pregou à porta
De sua humilde morada
Uma placa com os seguintes dizeres:
“Consertam-se palavras”.
Um senhor de terno, gravata e sapato de couro,
Ao ler os manuscritos,
Indagou-lhe a razão de tal desatino vocabular.
–– Há quem conserte imagem de santo e até almas,
Eu, simplesmente, sou consertador de palavras,
Por ofício.
–– Então, se amanhã eu lhe trouxer uns vocábulos
Co’o defeito poético de nascença,
O senhor houvera de ser capaz de consertá-los,
Ó meu nobre mestre das gramáticas? –– ironizou-o.
–– Não, senhor, porque não existem palavras
Co’o tal defeito de nascença,
Mesmo as mais impronunciáveis ou intraduzíveis,
Porque é destas costelas líricas que há de abrolhar
A substância incorrigível por natureza,
Que se intenta do labor diante da escritura
Pelo formão rústico da inspiração
Até forjar-se Poesia.
Passareza
Quando homem da cidade me aperguntou
Quanto que eu arrecebia p’ra assemear pé de mato,
De fruto e fulô, inté meio encabulado lhe arrespondi:
–– Moço, eu ganho em gorjeio de passarim…
Pr’ocê mandei fulô mais bonita
Ni’um cestozim véio dis páia
Pr’adornar vosso vestido de chita
Ao redor d’ocê formosura s’espáia
E a passareza co’a inveja de mim
Quando eu me achego p’ra viola
Co’a sórdade afoita de u’a moda
M’arremeda co’o gorjeio-flautim
Arremedo de passareza me alumia
Co’a toada em desalinho o desluar
No alvorecer de toda a mi’a agonia
‘Ocê se achega comigo a s’arrendar.
Tristeza de palhaço
A Charles Chaplin
Findada a noite sob o real espetáculo Quando descerram-se rubras as cortinas Da fantasia com a qual eu me disfarço A lágrima escorre por mímicas retinas
Desce picadeiro a tristeza do palhaço
Que encobre passado véu de estrelas
A pantomima ao luar o descompasso
Desfolha-me ao tempo pétala por pétala
Ao intento da risada sobre corpo lasso
As vestes descoloridas fincadas ao chão
Do camarim onde eu de mim me despeço
Cubro-me co’o velho paletó de algodão
Que me desabriga ribalta o frio cansaço
Da lida que floreia vida pela imperfeição.
Canto de algum lugar de mim
Qualquer canto eu canto em qualquer lugar
Mas só canto quando Deus me assoviar a melodia,
Que se acaso não seja minha ou de um Deus
De algum canto ou lugar
Que nem sempre me alicia a ser Deus por fantasia
Para eu poder cantar em agonia
Eis-me aqui em cantoria,
Voz a se forjar em Deus,
Quando em mim se prenuncia
Da costela, do barro
Do homem – Eu.
Qualquer canto eu canto em qualquer lugar
Mas só canto quando Deus, enfim, me assoprar
O silêncio que, quiçá, seja a divina sinfonia
Em seu canto de algum lugar de mim
Que nem sempre me alumia a ser Deus por alegoria
Para eu poder cantar em aleivosia
Eis-me aqui em cantoria,
Voz que se assemelha a Deus,
Quando em si se silencia
Da costela, do barro
Do homem – Eu.
Mirada
Quando mirei-me em teus olhos
E a saudade de um tempo
Que não vivemos dissipou-se em nós
Foi como se te desvendasses sem medo
Como se me perguntasses:
Quem és?
Como se te confessasses a sós
Sou o que não se decifra em retinas
Força de um arrebol sobre a noite
Que se descortina em silêncio de segredo
Como se te desnudasses em espelho
Da madrugada sem luar nem estrelas
Sem mistérios
Por todas as dores de um pranto
Por todas as horas de um instante
De ter-te às mãos sem desespero
De perder-te pela estrada afora de mim
Como se então tu me dispusesses
A amar, enfim.
Rio velho
A Fernando Pessoa
Vês aquele rio velho que recorta a minha aldeia
Decerto, dera nome a algum lugar de minh’alma
Remanso cego a desaguar-se em cais de maré cheia
Qual tempo de luar que se aclareia em noite tarda
Ao se despetalar por sobre estrelas onde se margeia
Quando mira aurora que a verdejar-se ao longe alva
Alumia horizonte feito noite pejada que s’encandeia
De lenda a fabricar arrebol em ventre de Lua Nova
Quiçá, ao redor da amplidão da alvorada se alteia
Por rastro-pirilampo da toada lisonjeira a toda trova
Quando o grão da lida por si só ao dar-se se semeia
Na ponta d’areia a s’embeber do mar Estrela D’Alva.
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Wander Lourenço é pós-doutorado em Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa; Doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (2006); diretor dos documentários “Carlos Nejar – Dom Quixote dos Pampas”; “Nélida Piñon, a dama de pétalas”; e “O Cravo e a lapela – Cinebiografia de Ricardo Cravo Albin”. Autor dos livros O Dramaturgo Virgem (2005); Com licença, senhoritas (2006); Iniciação à Análise Textual (2006); Literatura e Poder – Org. Lucia Helena e Anélia Pietrani (2006); O Enigma Diadorim (2007); Solar das Almas e outras peças (2008), Eu, psicógrafo – Teatro (2011), Antologia Teatral (2013); As aventuras da Bruxinha Lelé (2014), Dramatologia (2017); A lenda do Sabiá-Pererê (2019); Poesia (2020); Terrae Brasilis – Romance (2022).