Berrando Poesia: Wander Lourenço



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(Ilustração: Levi Noli/Revista Berro)

Epígrafe

 

Quando a Poesia me tomou

De assalto, dizendo-me:

– Mãos ao alto!… Passa a alma, 

Senão eu atiro!… 

Confesso que titubeei                                                               

Mediante tal fato bélico                                                               

De entregar-lhe tesouro

Tão caro e valioso. 

Porém, entre o risco de morte

Nas mãos desta Onça das almas 

E uma existência 

Oca e sem espírito, supliquei-lhe 

Diante de sua ameaçadora mira:

– Atira!…

 

 Talvez seja tarde para se ler um poema

 

Talvez seja tarde para se ler um poema

Se a noite longínqua se devaneia ao se desguarnecer do luar e das estrelas

Em firmamento-fátuo como se dissolvessem as quimeras em pétalas escarlates

A despencarem-se em cadência, abatidas pela roca mímica do tempo

Como se emudecessem ao desgorjear-se em silêncio tácito

Por sobre o que não se deve calar os míticos abismos

Que se sobrepõem por opressão justaposta ao grito submergido por lassidão ou covardia que aprisiona a alma em cárceres impalpáveis

Quando a opressão se conjuga como se fosse hóstia proibida ao discernimento

Por sobre tíbio percurso de profanação do rugido cego e alienado                                                             Em gesto de sublimação mórbida e (holo)cáustica

Quando o Verbo se petrifica pela ignorância fatídica sobreposta à mesa

Dos vermes esfomeados e pútridos da república insana e súdita

Se o aforismo naufraga mediante o dilúvio cíclico da bestial insensatez

E do perjúrio ritmado e aplaudido pela plateia atônita e obstupefata

Quando a estupidez se oficializa para além-diálogo entre a voz premida e a ruidosa

Eloquência da iniquidade se adversa ao ímpeto de rouca liberdade

Se o colóquio promiscuiu-se em razão da sordidez do açoite que estala

No picadeiro da consciência da plebe incógnita e bestificada

Quando o vocábulo se coaduna ao degredo intelectual não havendo

Quem se submerja ao que se evapora feito água em fogão à lenha humana

Estapafu(r)gidiamente.

 

O consertador de palavras

 A Manoel de Barros

 

Certa feita, o Homem pregou à porta

De sua humilde morada

Uma placa com os seguintes dizeres:

“Consertam-se palavras”.

Um senhor de terno, gravata e sapato de couro,

Ao ler os manuscritos,

Indagou-lhe a razão de tal desatino vocabular.

–– Há quem conserte imagem de santo e até almas,

Eu, simplesmente, sou consertador de palavras,

Por ofício.

–– Então, se amanhã eu lhe trouxer uns vocábulos

Co’o defeito poético de nascença,

O senhor houvera de ser capaz de consertá-los,

Ó meu nobre mestre das gramáticas? –– ironizou-o.

–– Não, senhor, porque não existem palavras

Co’o tal defeito de nascença,

Mesmo as mais impronunciáveis ou intraduzíveis,

Porque é destas costelas líricas que há de abrolhar

A substância incorrigível por natureza,

Que se intenta do labor diante da escritura

Pelo formão rústico da inspiração

Até forjar-se Poesia.

  

Passareza

 

Quando homem da cidade me aperguntou 

Quanto que eu arrecebia p’ra assemear pé de mato,

De fruto e fulô, inté meio encabulado lhe arrespondi: 

–– Moço, eu ganho em gorjeio de passarim…

 

Pr’ocê mandei fulô mais bonita

Ni’um cestozim véio dis páia

Pr’adornar vosso vestido de chita

Ao redor d’ocê formosura s’espáia

 

E a passareza co’a inveja de mim

Quando eu me achego p’ra viola

Co’a sórdade afoita de u’a moda

M’arremeda co’o gorjeio-flautim

 

Arremedo de passareza me alumia

Co’a toada em desalinho o desluar

No alvorecer de toda a mi’a agonia

‘Ocê se achega comigo a s’arrendar.

 

Tristeza de palhaço

            A Charles Chaplin

 

Findada a noite sob o real espetáculo                                                                         Quando descerram-se rubras as cortinas                                                                            Da fantasia com a qual eu me disfarço                                                                                A lágrima escorre por mímicas retinas

 

Desce picadeiro a tristeza do palhaço

Que encobre passado véu de estrelas

A pantomima ao luar o descompasso

Desfolha-me ao tempo pétala por pétala

 

Ao intento da risada sobre corpo lasso

As vestes descoloridas fincadas ao chão

Do camarim onde eu de mim me despeço

 

Cubro-me co’o velho paletó de algodão

Que me desabriga ribalta o frio cansaço

Da lida que floreia vida pela imperfeição.

 

Canto de algum lugar de mim

 

Qualquer canto eu canto em qualquer lugar

Mas só canto quando Deus me assoviar a melodia,

Que se acaso não seja minha ou de um Deus

De algum canto ou lugar

Que nem sempre me alicia a ser Deus por fantasia

Para eu poder cantar em agonia

 

Eis-me aqui em cantoria,

Voz a se forjar em Deus,

Quando em mim se prenuncia

Da costela, do barro

Do homem – Eu.

 

Qualquer canto eu canto em qualquer lugar

Mas só canto quando Deus, enfim, me assoprar

O silêncio que, quiçá, seja a divina sinfonia

Em seu canto de algum lugar de mim

Que nem sempre me alumia a ser Deus por alegoria

Para eu poder cantar em aleivosia

 

Eis-me aqui em cantoria,

Voz que se assemelha a Deus,

Quando em si se silencia

Da costela, do barro

Do homem – Eu.

 

 

Mirada

Quando mirei-me em teus olhos

E a saudade de um tempo 

Que não vivemos dissipou-se em nós

Foi como se te desvendasses sem medo

Como se me perguntasses:

Quem és?

Como se te confessasses a sós

Sou o que não se decifra em retinas

Força de um arrebol sobre a noite 

Que se descortina em silêncio de segredo

Como se te desnudasses em espelho

Da madrugada sem luar nem estrelas

Sem mistérios

Por todas as dores de um pranto

Por todas as horas de um instante

De ter-te às mãos sem desespero

De perder-te pela estrada afora de mim

Como se então tu me dispusesses 

A amar, enfim.

 

Rio velho

 A Fernando Pessoa

 Vês aquele rio velho que recorta a minha aldeia

Decerto, dera nome a algum lugar de minh’alma

Remanso cego a desaguar-se em cais de maré cheia

Qual tempo de luar que se aclareia em noite tarda

 

Ao se despetalar por sobre estrelas onde se margeia

Quando mira aurora que a verdejar-se ao longe alva

Alumia horizonte feito noite pejada que s’encandeia

De lenda a fabricar arrebol em ventre de Lua Nova

 

Quiçá, ao redor da amplidão da alvorada se alteia

Por rastro-pirilampo da toada lisonjeira a toda trova

Quando o grão da lida por si só ao dar-se se semeia

Na ponta d’areia a s’embeber do mar Estrela D’Alva.

 

///

Wander Lourenço é pós-doutorado em Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa; Doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (2006); diretor dos documentários “Carlos Nejar – Dom Quixote dos Pampas”; “Nélida Piñon, a dama de pétalas”; e “O Cravo e a lapela – Cinebiografia de Ricardo Cravo Albin”. Autor dos livros O Dramaturgo Virgem (2005); Com licença, senhoritas (2006); Iniciação à Análise Textual (2006); Literatura e Poder – Org. Lucia Helena e Anélia Pietrani (2006); O Enigma Diadorim (2007); Solar das Almas e outras peças (2008), Eu, psicógrafo – Teatro (2011), Antologia Teatral (2013); As aventuras da Bruxinha Lelé (2014), Dramatologia (2017); A lenda do Sabiá-Pererê (2019); Poesia (2020); Terrae Brasilis – Romance (2022).


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