Berrando Poesia – Joaquim Cesário de Mello



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(Ilustração: Levi Noli / Revista Berro)

 

Homem não chora

 

Choro nas noites claras

nos dias escuros

nas tardes chuvosas

e nos frios molhados das madrugadas

 

Choro chiados de saudades

de nostalgias passadas

cravadas na memória

que nem o tempo da velhice

ou a passagem dos calendários

me haverá um dia de arrancar

 

Choro pelos mortos não ressuscitados

pelos escombros das casas derrubadas

por meus gibis extraviados

pelos colégios que lá passei

das muitas aulas gazeadas

das lições purificadas de catecismo

e das aulas chatas de Português

que sempre revejo quando escrevo

 

Choro pelos terços no mês de maio

dos supositórios que minha mãe aplicava

das travessuras pueris que não confessei

pelo anjo da guarda que demiti

e pelas missas e pelos santos

que foram por mim abandonados

 

Choro pelos amores perdidos

que tantas lágrimas escondi

nas fronhas umedecidas dos travesseiros

no quarto distante da adolescência

em que dormia único e desacompanhado

 

Choro pelos choros não chorados

pelas lágrimas que os olhos trancafiaram

pelos soluços e uivos que devia ter dado

e por um dia ter até acreditado

que homem não geme, não choraminga

não grita, berra ou lacrimeja

 

Choro porque choro e é bom chorar

já que aqui por dentro sou todo inundado

feito um imenso oceano alagado

de nuvens e chuvas extravasadas

das tantas águas evaporadas

no calor ardente das minhas lembranças

 

 

Sonhos urbanos

 

Conheci um beco

que sonhava ser uma rua

com meios-fios ao lado

e calçadas planas sem buracos

 

Conheci uma rua

que sonhava ser uma avenida

larga e arborizada

com canteiros no meio

e coloridos semáforos nas esquinas

 

Conheci uma esquina

que sonhava ser uma reta

cheia de prédios espelhados

que ia de onde começava o sol

e findava onde o horizonte termina

 

Conheci um prédio

que sonhava ser uma casa

com jardim gramado

e plantas variadas

fincadas em solo de terras

onde habitam minhocas

e botijas cheias de ouro ocultadas

 

Conheci um jardim

que sonhava ser uma praça

repleta de árvores e paisagens

com um lago por onde patos

se refrescam nas tardes

em que as crianças passam

brincando suas infâncias

em balanços, gangorras e escorregos

 

Conheci uma praça

que sonhava ser uma cidade

que sonhava ser o mundo inteiro

 

Procura-se um poema 

 

Quero um poema que me leia

que me traduza por dentro

vendo meus ocultos escuros

ouvindo os inaudíveis sussurros

colocando versos onde não me entendo

 

Um poema que me desnude

ao me vestir de palavras

e que me revele sem pudor

acanhamento ou qualquer comedimento

o que se passa neste minúsculo espaço

dissimulado em que respiro no interior

dos meus impalpáveis abafamentos

 

Quero um poema que me detalhe

além das carrancas e das frontes

que me pinte em virgens espelhos

onde possa mirar minha outra face invertida

nas manhãs em que sonho estar dormindo

no mesmo instante em que estiver me despindo

 

Um poema que fale de mim

sem se preocupar com métricas ou rimas

que me verse com a boca que tenho

que me retire do peito a emoção

que sacuda a poeira guardada no chão

dos subsolos dos escombros que restaram

e que nem os cupins do tempo comeram

 

Quero um poema que me abarque

que me englobe e dialogue

com meus dispersados lados

com os tantos eus encontrados

até com os que não foram ainda achados

e que juntos bailemos de rostos colados

por todo o salão que a vida tiver me reservado

 

Procuro, então, por esse poema

que com as mãos se escreva masculino

mas com a alma se conceba feminino

e que aglutine todos meus pedaços

em um único e só transitório curto retrato

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