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Homem não chora
Choro nas noites claras
nos dias escuros
nas tardes chuvosas
e nos frios molhados das madrugadas
Choro chiados de saudades
de nostalgias passadas
cravadas na memória
que nem o tempo da velhice
ou a passagem dos calendários
me haverá um dia de arrancar
Choro pelos mortos não ressuscitados
pelos escombros das casas derrubadas
por meus gibis extraviados
pelos colégios que lá passei
das muitas aulas gazeadas
das lições purificadas de catecismo
e das aulas chatas de Português
que sempre revejo quando escrevo
Choro pelos terços no mês de maio
dos supositórios que minha mãe aplicava
das travessuras pueris que não confessei
pelo anjo da guarda que demiti
e pelas missas e pelos santos
que foram por mim abandonados
Choro pelos amores perdidos
que tantas lágrimas escondi
nas fronhas umedecidas dos travesseiros
no quarto distante da adolescência
em que dormia único e desacompanhado
Choro pelos choros não chorados
pelas lágrimas que os olhos trancafiaram
pelos soluços e uivos que devia ter dado
e por um dia ter até acreditado
que homem não geme, não choraminga
não grita, berra ou lacrimeja
Choro porque choro e é bom chorar
já que aqui por dentro sou todo inundado
feito um imenso oceano alagado
de nuvens e chuvas extravasadas
das tantas águas evaporadas
no calor ardente das minhas lembranças
Sonhos urbanos
Conheci um beco
que sonhava ser uma rua
com meios-fios ao lado
e calçadas planas sem buracos
Conheci uma rua
que sonhava ser uma avenida
larga e arborizada
com canteiros no meio
e coloridos semáforos nas esquinas
Conheci uma esquina
que sonhava ser uma reta
cheia de prédios espelhados
que ia de onde começava o sol
e findava onde o horizonte termina
Conheci um prédio
que sonhava ser uma casa
com jardim gramado
e plantas variadas
fincadas em solo de terras
onde habitam minhocas
e botijas cheias de ouro ocultadas
Conheci um jardim
que sonhava ser uma praça
repleta de árvores e paisagens
com um lago por onde patos
se refrescam nas tardes
em que as crianças passam
brincando suas infâncias
em balanços, gangorras e escorregos
Conheci uma praça
que sonhava ser uma cidade
que sonhava ser o mundo inteiro
Procura-se um poema
Quero um poema que me leia
que me traduza por dentro
vendo meus ocultos escuros
ouvindo os inaudíveis sussurros
colocando versos onde não me entendo
Um poema que me desnude
ao me vestir de palavras
e que me revele sem pudor
acanhamento ou qualquer comedimento
o que se passa neste minúsculo espaço
dissimulado em que respiro no interior
dos meus impalpáveis abafamentos
Quero um poema que me detalhe
além das carrancas e das frontes
que me pinte em virgens espelhos
onde possa mirar minha outra face invertida
nas manhãs em que sonho estar dormindo
no mesmo instante em que estiver me despindo
Um poema que fale de mim
sem se preocupar com métricas ou rimas
que me verse com a boca que tenho
que me retire do peito a emoção
que sacuda a poeira guardada no chão
dos subsolos dos escombros que restaram
e que nem os cupins do tempo comeram
Quero um poema que me abarque
que me englobe e dialogue
com meus dispersados lados
com os tantos eus encontrados
até com os que não foram ainda achados
e que juntos bailemos de rostos colados
por todo o salão que a vida tiver me reservado
Procuro, então, por esse poema
que com as mãos se escreva masculino
mas com a alma se conceba feminino
e que aglutine todos meus pedaços
em um único e só transitório curto retrato
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