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DOROTHY
Ó nossa devotada Dorothy
Dai o denodado destemor
Para derrotar os homens
De má vontade, sedentos
Das riquezas dormentes
Nos espessos veios da floresta
Deixai essa força dadivosa
Do vosso corpo mirrado
Quebrar a tunda do medo
Para só espalhar a festa
Dessa luz bruta do verde
Nos vastos mundos da floresta
A morosa pena da lei até pune
Quem não tem pena de nada
Mas logo, logo ficam fanfando
Os mandantes e mandatários
Que levam homens e mulheres
A não ver mais o sol da estrada
Padre Josimo (1986)
Chico Mendes (1988)
Dorothy Stang (2005)
Raimundo Nonato Carmo da Silva (2009)
Zé Cláudio e Maria do Espírito Santo (2011)
Emyra Wajãpi (2019)
Maxciel Pereira dos Santos (2019)
Paulo Paulino Guajajara (2019)
Ari Uru-Eu-Wau-Wau (2020)
Reginaldo Alves Barros e Maria da Luz Benício de Sousa (2021)
Zé do Lago, Márcia Nunes Lisboa e Joane Nunes Lisboa (2022)
Bruno Ribeiro (2022)
Dom Philips (2022) …
TRÊS MERGULHOS NA GARGANTA DO BRASIL PROFUNDO
1. IGNORAR ANÚNCIOS
A conversa daquela juíza
Com esta anônima menina
Não me lembro de nada
Mais ferino na retina
Lembro sim, outra juíza
Que envia outra menina
À cela cheia de homem
Minha memória ilumina
Aquela juíza tão saudável
Com cabelo todo alisado
Nunca triscou na fome
Num quarto despejado
Aquela juíza de sobrenome
Não circulante na ralé
Nunca teve dor de dente
Nem tirou bicho-de-pé
Aquela juíza a querer
Ver a menina a parir
O fruto de um estupro
Faz a luz da vida ruir
Mas não posso imaginar
Em circunstância igual
Outra juíza viesse a usar
A mesma medida do mal
Preciso assim me agarrar
A esse único pobre fiapo
Senão me dano doido
Vou me agarrar ao Diabo
Pois só sob Sua batuta
Encaro tal desmantelo:
Nos olhos da tal juíza
Estou incólume a vê-Lo
2. AMARGAZÔNIA
de novo
o mesmo filme
com cortes
de sangue
à sombra
do horror
a borrar
sem penas
águas infindas
tantas ideias
tanto amor
à causa verde
se acabarem
num saco
feito lixo
nem plantas
nem pedras
nem povos
o capital
não alisa
diz na lata
para ver
impunemente
passar boiadas
quer na bandeira
verde-amarelo
só desordem
assentar
no coração da selva
a bandalheira
3. QUINTILHA DA VERGONHA
ó minha pacata Umbaúba
batei o tambor da poesia
contra tribulação e tirania
para não veres filho teu
ser trucidado à luz do dia
Prelúdio
A poesia só quer um minuto de silêncio,
a poesia só quer um minuto de atenção.
Quem sabe um único verso
seja a causa de tua aflição.
Quadrinhazinha
Um desejo, uma loucura:
acreditar que um verso
há de consolar os aflitos
e tocará a face do eterno.
Rascunho perdido num livro de Neruda
Um poema está
para nascer.
Virá embalado
em grandes tistezas
ou em pequenas.
De longe:
massacres no primeiro mundo.
Ou pertinho:
bateram no meu ex-aluno
até a morte.
Os carrapatos mataram
meu cachorro.
Criatório
Esta luz que alumeia,
razão de estar aqui.
A Palavra, esse mistério
em que o mundo principia.
Um pouco menos pobre
por crivar dentro do dia
esse grifo tão poderoso
que verdece na poesia.
Tantos já foram tecidos,
quantos ainda na argila.
O poema, breve âncora
que minha mão assimila.
Ao se fechar a comporta
ao rumor dessa escrita,
lego algumas ranhuras
ao passaporte da vida.
Recusa
Triste como olho de cachorro
que quer passear
mas o dono precisa
dar conta do mundo.
Uma simbiose de ganidos
fura a lona da tarde.
O dono no canil
das palavras
esboça mil perdões.
A poesia ladra e brilha:
ladrilha.
Olaria
A árvore que vira lenha para fazer tijolos.
“A mão que afaga é a mesma que apedreja.”
Poema inacabado
Quantos poemas
Donizete Galvão
levou consigo?
Eu não consigo
carrear a pedra
desse silêncio.
Restaram-me no vídeo
sua risada farfalhante
e palavras dadivosas
sobre minhas parcas
ossadas & ranhuras.
Consolo sem praia.
Lá pelas tantas (ou Soneto zeppeliniano)
A Monge e Rita
Aqui estamos todos
lindos e de passagem
sabendo o começo
e o fim dessa viagem.
Entre mínguas de luz
e porções de sombra
batemos de frente:
festa, silêncio, lombra.
Então cada um resolve
o enigma como pode:
ponte, veneno, revólver.
Há talvez outra pena
para o que nos fode:
tudo acabar num poema!
Quadrinhas coloridas
Mundo amanheceu Miró
resolvi me mandar Dali
com meu olho todo Gogh
a te beijar cheio de Volpi.
Antes de ficar Malfatti
tomei um porre Segall
e, numa luz Portinari,
frutei Tarsila do Amaral.
Nesse sonho Visconti
fiz uma casa Iberê:
telhado azul-Ianelli
e jardim Tomei Ohtake.
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Jeová Santana nasceu em Maruim-SE, em 1961. É professor titular da Universidade Estadual de Alagoas e da rede pública em Aracaju. É autor de Dentro da casca (1993; 2ª. ed. 2019), A ossatura (2002), Inventário de ranhuras (2006), Poemas passageiros (2011), A crítica cultural no ensaio e na crônica de Genolino Amado (2014), O internato como modelo educacional segundo a literatura: um estudo sob a perspectiva da teoria crítica (2015), Solo de rangidos (2016) e Estilhaços (2021). Participou das coletâneas Chico Buarque, o romancista: ensaios (2021) e Sobressaltos: Antologia de poemas contemporâneos brasileiros (edição bilíngue, França, 2022). É um dos colaboradores do site Brasil 247.
A poesia de Jeová Santana é um verdadeiro alento, nestes tempos tão terríveis em que vivemos. Seus poemas sabem ser engajados sem perder o lirismo, e são gritos de protestos que nos representam muito bem. Para quem já leu algum livro de Jeová, fica claro seu compromisso, primeiramente, com a poesia, mas também com a denuncia das mazelas públicas, neste país de tantos desvalidos. Outrossim, Jeová nos brinda bastante com os temas do cotidiano. E faz isso perfeitamente.
Quanta profundidade a poesia do professor e poeta Jeová Santana apresenta. Ela nos atravessa de uma forma inexplicável. É como se mergulhássemos num mar revolto, mas ao mesmo tempo calmo e profundo… como se a sensibilidade e a reflexão abraçassem tantas realidades, assuntos e a vida em vários aspectos. Enfim, nesses versos tão intensos, vida e arte caminham juntas, proporcionando um renovar-se, um persistir em propor a poesia, não só como arte, mas também como um ato de resiliência diante de tempos tão desafiadores. 👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏
Poesia com forte teor social nesse mundo cada vez mais humano, demasiadamente desumano.
Enquanto, a poesia for a nossa válvula de escape estaremos fora da rota de colisão externa.
Belas poesias do professor Jeová santana, que consegue retratar alguns fatos da sociedade, nos fazendo sentir a profundidade de cada poesia, que são verdadeiros gritos de protestos. Mas que também é calmaria em dias tão turbulentos, ao qual nos deparamos atualmente. E encantador como tais poesias consegue retratar a realidade, de uma forma tão sensível e impactante.