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(Fotos: Benihana/arquivo)
Por Augusto Azevedo
Bons projetos já compuseram a cena musical de Fortaleza. Apesar de carregar o estigma de terra do forró, notáveis bandas de rock já passaram pela capital do Ceará e não me refiro às boys band ou mesmo às iniciativas esgotadas na música pop geradas a partir do investimento massivo da indústria cultural; falo de projetos inovadores, contundentes e diferenciados, que não deixavam nada a desejar em paralelo a bandas com forte divulgação midiática, consagradas pela turma do rock.
O underground local sempre foi fortalecido por consideráveis iniciativas, tendo a diversidade, a ousadia e a inquietude estética como características. Até mesmo como uma forma de compensação do que não se tinha acesso – levando em conta que no Brasil até os anos 80 sempre foi muito difícil acompanhar o que o mundo produzia devido à existência de bloqueios culturais imbuídos de controlar o que se consumia no país, entendendo que a partir dos anos 80 houve certa melhora, mas os acessos, por exemplo, a discos de rock, só passaram por uma significativa transformação com o advento da internet e do MP3 – muitos projetos foram iniciados, tendo a pluralidade como ponto de partida.
Célebres figuras como Belchior, Fagner, Rodger Rogério, Teti e Ednardo, o “Pessoal do Ceará”, por exemplo, apesar da forte influência da cultura popular regional em suas canções, claramente apresentam referências do blues, do ritman blues e é claro, do rock, em parte de suas obras. Essa pluralidade acompanhou estes e tantos outros artistas entre o final da década de 60 e a década de 70, assim como também atingiu variados projetos musicais da cidade de Fortaleza que brotavam a partir dos anos 80, como bandas influenciadas pelo punk rock e grupos dedicados ao hard rock, rock progressivo e heavy metal. Bandas que apareceram nos anos 90 e de certo modo valorizavam a pluralidade, além de passar por dificuldades que já eram comuns desde os anos 60, como a culpa estrangeirista e o estigma de que rock é coisa de gente doida.
Mesmo com as vastas tentativas de expurgar a música independente daqui, inúmeras bandas apareceram nos anos 90 fora de qualquer tipo de padronização e apelo comercial. Certo, muita coisa ruim surgiu nesse período, mas ninguém vai perder tempo falando do que não tem importância. Das bandas nascidas nesses anos, a Benihana, formada em 1997, se destaca e até hoje repercute para além das fronteiras do estado do Ceará. Com uma formação bem atípica para a cena local, com o trio rock básico (baixo, bateria e guitarra) e dois vocais, a banda fez muito barulho na cidade, apresentando um som com uma pegada forte, com muita criatividade, somado a letras questionadoras, que exploravam temáticas relevantes à vida nas grandes cidades. Enfim, a Benihana conseguiu expor um trabalho musical bem diferenciado do que se fazia por aqui.
Quando escutei pela primeira vez logo percebi algumas boas influências, como Planet Hemp, O Rappa e coisa e tal, mas o que pesou mesmo em meus ouvidos foi a proximidade da banda com um som que revolucionava o mundo – pelo menos o mundo ocidental – naqueles dias: Rage Against The Machine, uma das maiores bandas de todos os tempos, que lançou o seu primeiro disco, Rage Against The Machine, em 1992, mas que só foi mesmo chegar ao Brasil por volta de 1996, ano de lançamento de seu segundo álbum, Evil Empire. Com um instrumental que dispensa comentários – sim, parto do pressuposto que a maioria das pessoas que estão lendo este texto conhecem, mesmo que minimamente, o som da banda – aliado a um vocal com base no rap, deferindo críticas ao imperialismo estadunidense e à mundialização da economia, com todas as suas mazelas, a banda californiana, que difere completamente de tudo que era feito naquele estado, foi a pimenta estética pós-grunge – embora os sons não sejam em quase nada similares, ou próximos, virando trilha sonora de tudo que era anticapitalista espalhado pelo mundo. Mas a Benihana não se limitou ao estudo e à reprodução do som rageagainstiano; muito pelo contrário, a trajetória da banda é marcada pela proximidade de ritmos que até então não eram tão fundidos como poderiam ser.
Numa certa tarde recebi um link referente a um arquivo em áudio postado no Youtube. Se tratava de um álbum, ainda com a ausência de alguns procedimentos fonográficos, como a mixagem de algumas faixas, mas que apresentava uma considerável reunião de músicas que marcaram a trajetória da Benihana na cidade, na vida musical de muita gente.
Quem me forneceu o link do álbum – que devido ao trabalho da capa pode ser conhecido como Contém 12 Faixas – foi o José Felix, irmão das antigas, guitarrista da Benihana e presente na banda desde os primeiros lampejos de sua formação. Conversamos sobre o disco por horas, ele mesmo nos últimos anos tinha me disponibilizado várias gravações, inclusive uma espécie da compilação com algumas faixas prontas, finalizadas, com direito a todos os recursos que se tinham em mãos, mas aquele arquivo, Contém 12 Faixas, me soou diferente de tudo que já tinha ouvido da banda; se tratava de um trabalho aprimorado e que refletia alguns lances encontrados nas raízes do grupo. Pessoalmente, não senti a ausência de nenhum recurso técnico no disco; aumentei o volume e tratei de curti-lo… quase sem parar para fazer outra coisa. Sensacional, já curtia a Benihana, sempre achei um dos melhores projetos musicais de Frustraleza dos anos 90, e depois dessa experiência passei a admirar mais ainda.
Uma das peculiaridades que destacou a Benihana na cena underground local sem dúvidas foi justamente a disposição nas letras em retratar o cotidiano da capital do Ceará. Com letras do Camilo Ximenes e do Engels Fgp, a banda, que ao longo de sua história contou com a presença de músicos como Junior Animal, Roque Ney Mota e Daniel Pinto, este último presente deste a primeira formação, expressava as infinitas contradições locais, alimentadas pela desigualdade social, manipulação das instituições públicas e uma terrível mania de tratar tudo de modo artificialmente comum.
Na faixa Bala de Borracha é frisada a repressão que o Estado comete contra trabalhadores obrigados a se organizarem devido às péssimas condições de sobrevivência, tendo na polícia e demais instâncias do aparato repressivo o intermediário perfeito para fazer o mal. A crítica à polícia é estendida em Gang Fardada, ressaltando os aspectos mafiosos das instituições policiais, em especial da Polícia Militar do Ceará, que em tempos em que gravações de vídeos por meio de aparelhos portáteis era um devaneio de fãs de Star Treck, reprimia as pessoas, em especial a juventude, com uma absurda intensidade. Em Gastando Tempo é retratada a rotina política de uma cidade em que tudo chegava depois, a cidade que consegue ser a da luz e a das trevas ao mesmo tempo era apresentada pelas letras da Benihana com propriedade de conhecimento e muita criatividade, sem se limitar à reclamação panfletária.
“Eles ficam te atentando, eles ficam te atentando, eles te dão uma cesta básica, eles ficam te atentando”.
O trecho acima é o refrão da faixa Tentação, que define a estrutura de organização partidária cearense, em que o voto de cabresto, prática mais que comum no estado desde as primeiras eleições políticas, estabelece a ordem das coisas por aqui, assim como no Brasil de um modo geral.
A Benihana é contemporânea de manifestações movidas contra qualquer tipo de celebração da invasão do território brasileiro por parte dos europeus. Em 500 Anos é realizado um apanhado de críticas a respeito de mazelas que condenam o país a uma paralisia, que afeta toda e qualquer possibilidade de construção de uma identidade nacional, favorecendo a mesma política que motivou os massacres dos povos nativos daqui e demais crimes que marcam a História do Brasil.
Na minha opinião Nordestinicamente Falando não é só uma das melhore faixas do álbum, mas um dos frutos mais preciosos da cena underground local. A música, da introdução ao final, é perfeita, com uma pegada que se tornou a cara da banda. Outras faixas bem marcantes, que até hoje têm suas letras na boca de uma galera compõem o disco, como a antológica Cidadão de Terceiro Mundo e a mais que conhecida Olhando Torto.
Enfim, Contém 12 faixas, na minha humilde opinião é um discão, que vale muito a pena escutar, um som como este deve ser valorizado não só porque faz parte da memória de muita gente, e sim por ser especialmente precioso.
Clique no link a seguir para fazer o download do álbum Contém 12 Faixas – Benihana.
Augusto Azevedo é empreendedor da área de Organizações Sociais, atualmente se encontra envolvido em estudos sobre aproveitamento de recursos hídricos com Peter Brabeck-Letmathe