2 Comentários
Havia muitos anos que não ia ao zoológico. Algo para mais de uma década. Mas dia desses estava em Brasília, e os cicerones brasilienses me recomendaram uma visita ao zoo, falando das muitas espécies que encontraria por lá. Fui sozinho. Não me preparei psicologicamente para a surpresa que me acometeria. Como havia mais de dez anos que não fazia tal “passeio”, a última vez em que fui era outro. Como diz Belchior, “no presente, a mente, o corpo é diferente, e o passado é uma roupa que não nos serve mais”.
A primeira parada foi numa área onde habitava um tigre branco. Aquela imagem lancina n’alma até agora: o animal, magro para um bicho daquele porte, dava voltas circulares ao redor de seu confinamento. Voltas e mais voltas, numa atitude obsessiva. Em um dado momento, nossos olhos fitaram-se mutuamente. Vi tristeza e angústia. Imaginei o tigre branco correndo em liberdade, caçando, trepando-se em árvores, vivendo e morrendo em sua natureza primordial. Liberdade. Ali, naquele instante, tive a exata dimensão do que estava ajudando a reproduzir com aquela visita. Uma barbárie. É isso o que legitimamos ao vivenciar como lazer espaços que escravizam animais.
Pensei em desistir, mas decidi ir em frente. Sabia que a minha derradeira ida a um local como aquele não seria em vão. Quis experimentar o desconforto ao deparar com os demais bichos e seus comportamentos obsessivos e estressados para que aquela oportunidade, que exigiu um encouraçamento momentâneo, servisse para uma elaboração interior que resgatasse parte da minha humanidade perdida ali. Uma turma escolar de pré-adolescentes gritava transtornadamente a cada encontro com os grandes felinos, que eram acordados de seus cochilos com sons estridentes:
-Aaahhhhhhhhhhhhhhh!!! Um tigre, um tigre, tia!
– É, um tigre. Ei, ei, não pode jogar pipoca pra ele. Sai daí menino, só pode chegar até aqui.
As escolas têm um papel decisivo nesse comportamento. Turmas e turmas são organizadas sistematicamente para essa atividade quase “curricular”. A pedagogia hegemônica tem uma função central no processo de desumanização moderno. Entre as descobertas infantis e as atividades de lazer proporcionadas pela educação escolar e também pelas famílias “cidadãs” está o deleite com a escravidão de animais. Ora, de que vale saber sobre as características biológico-comportamentais de um tigre e vê-lo in loco se não pudermos perceber a anormalidade que é o seu aprisionamento? Se não pudermos sentir empaticamente a dor e o banzo do tigre enjaulado?
Após cerca de uma hora de “passeio”, as plaquinhas do zoo informando que os bichos eram bem alimentados e recebiam treinamentos para adaptarem-se aos novos “lares” não me convenceram. Constatei sofrimento, estresse, movimentos obsessivos e olhares desesperançosos dos animais. O homo urbanus desenvolveu-se em crescente dessincronia com as leis da Natureza. Enjaula animais para o seu divertimento e lazer. Engaiola passarinhos para que eles só possam cantar privativamente. Corta as asas dos papagaios para que eles não possam voar e fiquem restritos à família prisioneira. Tudo isso levado a cabo com uma “naturalidade” extrema. Espelho da desumanização que toca o mundo com açoite!
Aliás, indo mais além, há pessoas que simpatizam profundamente com animais domésticos, como gatos e cachorros, mas que não perdem uma única oportunidade para matar uma formiga, uma aranha, uma muriçoca, um rato, uma barata… Pelo contrário, repousa nelas um prazer em esmagar com o chinelo aquela baratinha que corre para debaixo do sofá, ou aquela formiguinha que ataca o açúcar! “Eu amo animais, inclusive tenho um cachorrinho, mas essa aranha caranguejeira… poff!”, diz e faz a pessoa comum.
Não estou aqui defendendo o convívio encantado com animais peçonhentos e transmissores de doenças. Sublinho que, em verdade e a priori – quer queira ou não! –, já há um convívio equilibrado, quase imperceptível, no qual baratas, formigas e pequenas aranhas vivem nos lares humanos às escondidas, sem serem incomodadas. O que problematizo é que há maneiras e mais maneiras para, em casos-limite, expulsar certos insetos, aracnídeos ou roedores das casas, mas a única opção pensada é sempre a morte desses bichos. Já ouvi pessoas dizendo do “prazer” que é matar muriçocas e outros insetos com raquete elétrica. Leram bem? “Prazer” em matar! Uma coisa é, num ato reflexo, dar um tapa na parte do seu corpo que está sendo picada e por vezes acertar o mosquito, outra bem diferente é sair, feito “maníaco da raquete”, caçando insetos de forma obcecada para matá-los. Há, portanto, uma clara seletividade e hierarquia de quais bichos merecem preservação e quais merecem a morte. Mas, aceite!, a barata e você têm o mesmo direito à vida!
Muitas pessoas dirão que querer igualar um humano a uma barata é por demais exagerado. Essas pessoas realmente se julgam superiores às baratas, como a insensível família de Gregor Samsa, no romance de Kakfa. No mais das vezes, é por uma questão elementar e banal: o tamanho. “Salvem as baleias, exterminem as baratas”. Animais de centímetros são quase sempre matáveis para essas pessoas: muriçocas, baratas, mosquitos, moscas, lagartas, formigas… com exceção das abelhas, porque essas produzem mel (e, portanto, a relação se dá de forma utilitarista), e das borboletas, com toda sua popularidade retratada em desenhos, lendas e filmes infantis como criaturas “fofinhas” ou fadas disfarçadas.
Outro álibi é que insetos, como o aedes aegypti, são causadores de doenças. Ora, a espécie que tem causado mais enfermidades e destruição no planeta é a humana e nem por isso pensa-se em exterminá-la (quer dizer, se não for de uma subespécie “bandida”, dizem as turmas “justiceiras”). A maior incidência do “mosquito da dengue” nos países tropicais nas últimas décadas é consequência das ações humanas. O mosquito, de origem africana e que está em terras americanas desde o século XVI, tornou-se mais resistente e nocivo devido ao uso de inseticidas químicos para combatê-lo. Ou seja, transformou-se um inseto de convivência equilibrada com o ser humano por séculos (no caso africano, por milênios) num monstrinho geneticamente modificado por aditivos químicos. E aí o único método adotado para lidar com a questão é exterminá-lo, mas não se pensa em parar a produção de inseticidas químicos. (Sem falar no poder das agências midiáticas em gerar pânico social, uma vez que lucram com a espetacularização dessas “epidemias”. O “fenômeno” da zika, por exemplo, do jeito que foi retratado midiaticamente supunha a ideia de uma imensa e incontrolável epidemia. Super Zika! Meses depois, pouquíssimo se fala no assunto, e as pessoas seguem normalmente suas rotinas). Essa lógica de intervenção desequilibrada da ação humana no meio natural vale para o aumento de ratos, baratas, moscas, etc.
Reitero: não estou promovendo um relação ingênua com animais peçonhentos e transmissores de doenças, mas propondo uma tentativa de reconciliação. Há casos, de infestação, por exemplo, em que se fazem necessários métodos radicais de combate. Mas são situações-limite, excepcionais. O que trago à discussão é a propensão condicionada a matar gratuitamente pequenos invertebrados e roedores como se fossem coisas descartáveis. É preciso, portanto, não uma relação encantada, mas naturalizada, de respeito aos “seres desimportantes”, como bem poetizou o mestre Manoel de Barros. “Desimportantes” para o humanoide, diga-se por oportuno, porque para a Vida têm a mesma relevância que eu e você.
Noutra vezes, usa-se a cultura humana para justificar uma suposta e dedutiva superioridade existencial sobre os animais “irracionais”: “Inventamos o avião, o computador, o satélite, logo…”. É uma argumentação paupérrima que diz muito do homo academicus, forjado pela racionalidade formal e instrumental, que não reflete a sua existência a partir de uma cosmovisão unificada, mas, pelo contrário, pensa a tecnologia científica como separada da Natureza. E aí se esquece de prezar mais os insetos que os aviões, como novamente nos ensinou o poeta, do alto de sua sabença espiritual.
Em síntese, a barata e o homo sapiens, para usar um exemplo limite, têm formas biologicamente diferentes, mas em essência e qualidade para a Vida atualizam constantemente o mesmo mistério universal de nascer, crescer, alimentar-se, reproduzir-se e morrer. São apenas projeções e manifestações diferenciadas de uma mesma realidade: a Vida. Penso que Kafka, sob uma perspectiva invertida e surrealista, brincou com isso n’A metamorfose, numa reflexão contundente e angustiada sobre a condição moderna do ser humano.
O fato é que para a Natureza não há existência mais importante que outra. Seja esta o sol, um ser humano, um animal, uma planta, um búzio na praia, ou o vento brincante que passeia entre os manguezais e as dunas da Sabiaguaba, saboreando o tempo e deitando-se no mar! Quem faz essa distinção hierárquica é o “homem racional”! O “urbanoide” está terrivelmente desconectado dessa Unidade cosmológica, uma vez que, ainda embriagado pelo Iluminismo, pensa ser o umbigo universal, mesmo após Copérnico ter dito ainda no século XVI que a terra não era o centro do universo.
…
Há um tempo, numa noite de Lua crescente, nessas madrugadas em que ela, branqueada e brilhosa, parece nos sorrir, avistei um guaxinim andando pela rua. Os guaxinins são cada vez mais raros em Fortaleza, expulsos de seus matagais pelo processo predatório de especulação imobiliária. Mas nessa noite vi um, grandão, que caminhava em seu descompasso. O olhei atônito. Nunca havia visto um bicho daquele in loco, marchando em sua exuberância e exotismo. Admirei-o em sua naturalidade.
– Olha mah, um guaxinim!, disse, boquiaberto, olhos bem atentos e arregalados aos seus movimentos.
– Vixi, é mermo. Lá na Levada tinha muito!
(A “Levada” é uma região brejeira na Cidade dos Funcionários – bairro da zona sul de Fortaleza, onde passa um córrego que vem da Messejana e deságua no rio Cocó. Recentemente, foi “urbanizada” e o córrego foi canalizado, assim como seu matagal totalmente transformado em concreto. Os guaxinins que antes viviam por lá sumiram).
Voltando ao dia da lua sorridente, o guaxinim aparentava tranquilidade, mas quando avistou-nos recolheu-se ao terreno baldio próximo, farejando perigo. O encontro durou poucos segundos. Mas o suficiente para que eu o visse em sua liberdade e natureza espontânea. Parece uma besteira piegas, mas eu sempre recordo esse dia como algo muito bonito que vivi!
Artur Pires é jardineiro de plantas e sonhos; gosta de literatura, de surfar, jogar bola, e de pular da ponte velha – ahh, e de escrever quando dá vontade!