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Ao contrário do que pregam as más línguas, adianto que não sou afeita a brigas, confusões. Sabe o ditado: “Dou um boi pra não entrar numa briga e uma boiada pra não sair dela”? Pois é justamente disso que quero falar. Um desabafo. A minha psiquiatra, a simpática doutora Cinira Lopes, pediu que eu descarregasse no papel as minhas frustrações. Não só; dramas, intrigas e aborrecimentos. Na verdade, uso o papel para muito mais. Poderia escrever uns dez livros com o material que tenho. Há anos as folhas dos cadernos – tantos – me suportam. Quem estaria disposto a ouvir as minhas dores? São muitas. Sim, Cinira escuta, porque é paga pelo governo para isso. É sua obrigação. Ela não faria voluntariamente, de bom grado, tenho certeza. Mas, vamos ao ponto: na sexta-feira atrasada, saí, como se diz, com uma mão na frente e outra atrás. Em suma: lisa, batendo, sem um puto no bolso. A ideia era de passar na casa de Valéria e perguntar, na maior das boas intenções, se ela seria capaz de quebrar o meu galho, mais uma vez. Em último caso, iria ao banco para tentar um novo empréstimo, para pagar o agiota. Não queria mexer com bancos – ladrões! –, e sabia que, me chegando à Valéria, mulher de coração bom, não teria de me aventurar na desordem – esta, que me persegue desde quando a minha existência era uma indesejada expectativa no saco do meu genitor. No caminho, seis quarteirões, recebi cinco mensagens do sanguessuga cobrador; ele me dava três dias para eu “resolver a minha vida”. Contando que estava com dez dias de atraso no pagamento da prestação, mais três eram para mim uma bênção. Fui mais aliviada. Contei ao perseguidor que, impreterivelmente, “a prestação estará em sua mão na segunda-feira”. O homem respondeu: “Dê seu jeito! Ou darei o meu!”. Quem me atendeu foi Ricardo, “o marido”, com a sua cara típica de azedume. “Valéria não está!”. Quis me despachar, no ato. De longe ouvi a voz dela: “Ô, Juan, meu filho, saia desse computador e vá estudar!”. O caboclo ficou desconcertado e disse: “Espere aí”. Não pediu desculpas e saiu bufando. Não perdi a oportunidade, porque não sou de guardar as coisas: “Olha, Ricardo, bastava me dizer para voltar outra hora; que ela estava ocupada. Não precisava mentir”. Ele não teve sequer a atenção de se virar e terminar o colóquio com educação. Entrou feito uma bala. Eu, sinceramente, não sei o que Valéria viu nesse encosto. O homem finge que trabalha e deixa a mulher ralando o bucho para preparar bolos e quitutes para a padaria da esquina. Eu tenho pena da minha amiguinha. E sei que ela não tem muito a oferecer. Mas esse coração bom se nega a esquecer o favor que lhe fiz, ao salvar a sua mãe, dona Deolinda, que quase morreu engasgada com uma espinha de peixe. Fui eu quem a levou para o hospital. E isso, felizmente, a queridinha Valéria não apaga da memória. Deolinda morreu bem depois, mas de uma fatalidade igual ou mais bizarra que esse acidente relatado: uma carreta tombou no centro, e a velha passava no exato momento, sendo atingida por um engradado de cerveja na cabeça. Eu ri, claro, mas longe das vistas de Valéria. Parece que a mulher estava condenada a morrer de graça e matar os outros de graça. Bem, voltando à minha amiguinha, quando ela me viu, forçou uma cara de choro; não saía uma gota de lágrima. Entendi o recado. Ela estava disposta a enredar numa ladainha sem fim. Então, para não encompridar a conversa, disse que o agiota me mataria na segunda-feira se não arranjasse mil reais. Valéria arregalou os olhos e, como sempre, não me reprimiu em nada. Apesar de saber que me enfio em empréstimos e mais empréstimos, desta feita não soltou um ai. Olhou-me e, com a cabeça pendendo sobre o ombro esquerdo, como a desfalecer, disse que desta vez era ela que precisava da minha ajuda: Ricardinho estava sendo procurado pela polícia, por tráfico de drogas. Pronto, descobri a ocupação do malandro. Claro que andar ostentando, sem um trabalho fixo, fazendo bicos de encanador e de eletricista, não lhe renderiam uma caminhonete Toro, lustrosa, estacionada na garagem. Dava nas vistas. Portanto, nas minhas contas, Valéria teria duas alternativas: uma, me emprestar o dinheiro e ter o marido preso; outra, não me arranjar o dinheiro e, mesmo assim, ter o marido preso. Ela falou em fiança. Eu disse: “Boba, não tem fiança para isso. Ele vai ser preso de qualquer maneira; e você não pode ficar acobertando, porque pode sobrar para você. Entendeu?!”. Ela franziu a testa, intrigada; pôs as mãos na cabeça, começou a chorar de verdade, e eu a acalentei. Peguei as suas mãos suadas, beijei-as, e provei quem, de fato, a amava. Ela se sentiu acautelada, reconfortada, e me agradeceu o apoio; que assim que recebesse algum dinheiro me ajudaria, mas que, agora, não teria de onde tirar. Eu dei a sugestão de pegar “emprestado” com o marido rico; ela riu e captou a mensagem. Logo mais, ao chegar em casa, denunciei o embusteiro, para liberar a minha amiguinha do peito. Enviei detalhadamente as descrições e uma foto do sujeito à polícia. A prisão foi algo teatral, orquestrada, que parou o bairro. Soube, depois, que ele era procurado há tempos, usava nome falso e, inclusive, teria mudado as feições, para despistar a polícia. Valéria me ligou, confirmando a sina e me chamando para ficar com ela; para aquietar o seu coraçãozinho; para me agradecer. Quando cheguei, de cara, ela me deu muito mais que mil: cinco mil reais. Ela falou que era um “presente”, por tudo de bom que lhe teria feito. “É o que você merece, por me fazer abrir os olhos; por me salvar de tantas enrascadas!”. Paguei o agiota, livrei a minha pele; comprei uma máquina de lavar, uma televisão smart 50’’ e um micro-ondas, a prazo, só mesmo porque estava precisando, e porque tenho crédito na praça; e enchi-a de mimos, como num “dia de princesa’”, no centro da cidade. Finalmente, mesmo na dor, Valéria entendeu o que é felicidade – ao meu lado.
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Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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