0 Comentários
(Charge: Latuff)
Por Artur Pires
Anote aí: ainda hoje, em qualquer noticiário midiático da imprensa empresarial, de qualquer parte do Brasil, você, leitor/ouvinte/telespectador/internauta, tomará ciência de, no mínimo, mais um caso da violência que assola o país. As consequências da guerra civil que impera no cotidiano brasileiro são diariamente retratadas na mídia empresarial, que conta ainda com a espetacularização e a “venda” dessa tragédia social nos programas policialescos.
Mas e as causas? Sim, e as causas dessa violência desenfreada? Ah, essas são propositalmente escanteadas. Não é do interesse da “grande mídia” discutir os porquês da escalada da violência nas cidades brasileiras, uma vez que se se propusesse a levantar o debate em torno dessa questão, se chegaria à conclusão de que o maior responsável pela barbárie social brasileira é o modo de produção hegemônico baseado no dinheiro e no consumo, que aprofunda desigualdades e cria duas realidades sociais: a dos que têm e a dos que não têm.
A sociedade brasileira legitimou e, pior ainda, naturalizou a mais cruel das violências: a da exclusão. Nesse exato momento, enquanto se lê essas linhas, há milhões de brasileiros morando em barracos de pau, papelão e lona nas inúmeras favelas que grassam pelo país; milhões de brasileiros dormindo em cima de papelões, embaixo de marquises e viadutos; milhões de brasileiros catando lixo para comer e sobreviver, disputando seu café-da-manhã, almoço e janta com gatos e cachorros em feiras, praças e calçadas. O mais aterrador de tudo isso? Esses brasileiros são vistos diariamente nas ruas, sinais de trânsito e praças das grandes cidades, mas ainda assim permanecem invisíveis aos olhos dessa sociedade marcada por contrastes. Essa mesma sociedade que, quando muito, dá um trocado para o pretinho que faz malabarismos com bolinhas no semáforo e em seguida ruma para sua casa convicta de que fez sua “boa ação”.
A tragédia da exclusão, da desigualdade e da miséria é escandalosamente ignorada pela mídia empresarial. Quando vem à tona, emerge sob a forma da criminalização da pobreza. Para a mídia burguesa, o bandido no Brasil tem cor, classe social e residência: é preto, pobre e mora na periferia. Ao Partido da Imprensa Golpista (PIG), é necessário construir este estereótipo do criminoso para sombrear a real causa da violência. É por isso que mídia e sociedade aplaudem quando a PM invade favelas e mata traficantes – muitos destes já rendidos – e, em maioria, extermina à revelia moradores que não têm participação nenhuma nessa guerra. É por este mesmo motivo que mídia e sociedade cantam loas à invasão de morros cariocas pela Polícia e pelas Forças Armadas.
Agora, dizem eles, essas comunidades “viverão em paz e libertas do tráfico”. Primeiro, paz sem voz, não é paz, é medo, já diria o Rappa. Segundo, libertas do tráfico? Ora, o tráfico continua a existir abertamente, com a diferença de que agora a PM abocanha parte generosa do lucro da atividade, que antes era exclusivo aos traficantes. Mas isso, ah, isso não é motivo de pauta para a mídia vendida. À imprensa burguesa, é bem mais pertinente aplaudir as UPPs e referendar a domesticação das comunidades invadidas aos padrões do status quo vigente.
Enquanto se lê essas linhas, centenas – quiçá milhares – de brasileiros que moram em favelas, principalmente jovens negros, estão sendo mortos, seja por disputas entre gangues rivais, seja, em sua maioria, pela PM (a polícia brasileira é a que mais mata no mundo; mais do que o Exército fascista de Israel e o governo sírio juntos). É como diz o Racionais MC’s, “assustador é quando se descobre que tudo dá em nada e que só morre o pobre”. Esses jovens são, ao mesmo tempo, causa e conseqüência de uma violência legitimada pelo Estado e endossada pela sociedade. Mas ninguém os vê. Afinal, eles estão lá, no outro Brasil, aquele da miséria, da indignidade, da invisibilidade. A sociedade não se importa com o banho de sangue diário, com a tragédia cotidiana pintada em vermelho nas periferias brasileiras. Não há comoção nacional para esses casos.
Mas experimente um desses jovens se revoltar da sua realidade miserável e violenta, resolver arrostar o estado das coisas e partir para o confronto direto, armado. Experimente esse jovem assaltar e, pelo calor das circunstâncias, matar um classe-mediano. Ah, certamente a mídia, com seu moralismo reacionário, dedicará editoriais, minutos preciosos e páginas inteiras de seus veículos para denunciar a violência no Brasil, usando, como exemplo, o caso do “bandido” que assassinou o “trabalhador”. O caso se transformará rapidamente em comoção nacional. Pessoas comentarão nas ruas, nas paradas de ônibus, à espera do metrô e, assim, a criminalização da pobreza será cada vez mais incorporada ao ideário e ao imaginário coletivo da sociedade brasileira.
Vale deixar bem claro aqui (muito claro mesmo!) que não se está defendendo a morte de quem quer que seja, seja ele rico, pobre, preto ou branco. Ou, muito menos, fazendo-se apologia ao crime. O que se traz à reflexão e se tenta desconstruir é esse discurso midiático altamente seletivo e moralizador, que filtra por classe social e etnia as mortes que quer mostrar, bem como seleciona, também por classe social e etnia, os “bandidos” que quer apresentar à sociedade. A morte de pobre apenas é destaque na imprensa convencional quando morrem, de uma vez só, mais de cinco. E sabe por quê? Porque chacina rende audiência, chacina “vende”.
Enfim, é fundamental que paremos de pensar a violência no Brasil presos ao padrão global, à la Capitão Nascimento, ou à hipocrisia dos lixos televisivos policialescos. É imperativo que analisemos essa questão sob o prisma do profundo fosso social que aparta os inseridos a essa sociedade dos marginalizados por esse mesmo tecido social. Há, na verdade, bem antes dos atos violentos que tomamos conhecimento no noticiário, uma violência e uma omissão simbólicas, mas também reais, brutais e devastadoras, praticadas todos os dias contra o povo pobre – legitimadas pelo Estado e assinadas embaixo pela própria sociedade civil. A questão da violência vai muito além do maniqueísmo “mocinho(a)” da classe média x “bandido(a)” da favela” que a mídia, a todo momento, nos impõe. Como diria a sabedoria popular, o buraco é mais embaixo! E como é!
* Artigo publicado na Revista Berro – Ano 01 – Edição 01 – Maio/Junho 2014 . Veja aqui a versão PDF