0 Comentários
I
Mais um desamor é covardia.
Mais uma vez, buscar,
em todas as vísceras,
força para a indiferença
e tentar me convencer
de que perdi os sentimentos.
Mas me pergunto, à queima-roupa,
se serei bem-sucedido em desdenhar
desejos que não cabem mais.
Se conseguirei atingir
jurisprudência longe do toque,
dos braços, mãos, pele e boca
e se desenterrarei da memória
nosso gosto embaralhado,
antes de nos depararmos
com bagagens sisudas do coração.
Busco estatutos que condenem à morte
sentimentos que destrato.
Legislações, juízes, processos e sindicâncias
que sublimem ternura, apego e empatia.
Leis que vejam corpos distanciados
como mera física mecânica
e que reduzam à poeira
o que trovadores e filósofos
inventaram de idolatrar.
Sem sucesso.
Ainda conspiro para termos as graças um do outro
e reinvento nossos corpos sobrepostos,
leves como o pano que abre o ato.
Ainda recalculo rotas que me segredem
a esquina em que me desencontrei de você.
Porque nada disso teria sido escrito,
se não me tivesse descasado dos passos seus.
II
A regra é o desencontro;
o encontro, esse desalinho,
teima em desafiar
a norma do desamor.
O costume é não falar,
não expressar.
É seguir em descompasso,
corpos e mentes sob falha,
sob a tese constante
de que tentar é pior do que se conformar.
Se déssemos tempo para o vinho encorpar,
se sugássemos da confluência todas as gotas,
não haveria tanta batalha,
não haveria tanta diferença,
não haveria tanta colisão.
Mesmo na separação,
seguiríamos menos vacilantes e impenetráveis,
antipáticos a batalhas campais entre dar e receber,
a cobranças – com juros de cheque especial –,
por afeto e empatia.
Deixaríamos o tempo soterrar
os rastros feios do coração
e deixaríamos de nos tatear
com braços frouxos e preguiçosos.
Como nossas dores não saem nos jornais,
supomos sempre que encontros nasçam quadrados,
com beijos moles esvaindo-se pelo vazio da cela.
Os prós somem, os contras aparecem,
a carne emudece e tudo impede.
A valentia e suas energias súbitas
extinguem-se pelo mar dos presídios ilhados.
Por mais que remendemos sonetos,
e por mais que maldigamos injustos desfechos,
o desencontro é sempre a regra
e folheamos, agoniados, por notas de rodapé
que enumerem laudas e laudas de exceções.
//
#poesia #desencontros #poesiabrasileira #poesianacional #literatura
///
Tuca Silveira é poeta e compositor carioca. Apaixonado pelos modernistas e por Machado de Assis, tem epifanias poéticas intermitentes – o que nem sempre serve para alguma coisa –, diálogos entusiasmados com sua cachorrinha e alguns poemas publicados. Vive entocado como engenheiro nas horas vagas.