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A mancha, 8 de maio de 2020
Estimado Ardilla,
Espero que você esteja bem de saúde e de ânimo. Confesso que seu laconismo ainda me assusta um pouco. Na falta de palavras sempre mora um medo que não pode esconder seu rosto, e eu o vejo com uma transparência insuportável. Sinto muito por tudo. Eu teria gostado de conhecer sua mãe, apesar de sentir que já éramos íntimas só pelo fato de poder amá-lo incondicionalmente. Os sentimentos compartilhados sempre aproximam as pessoas. E bem, se Borges tem razão, nos cruzaremos em algum momento.
Ontem foi um dia estranho. Tive um encontro com a mancha de café na minha saia finlandesa e lembrei-me desse dia em busca de Alegría naquela livraria histórica. A mesma onde tive o prazer de um encontro com Galeano. Eu esperava por um poema em alemão e você apenas esperava, sem saber bem o que esperar depois de dois dias de mergulho em meu mundo caótico. Como se um terremoto habitasse seu corpo, você, desastrosamente, derramou seu café pela mesa, pelo meu corpo, como quem quisesse demarcar um território desconhecido. Lavando a saia, a imagem das suas mãos lavando minha calcinha suja de sangue no dia anterior ficou presa em algum lugar. Resolvi deixar a mancha e ainda sinto o gosto do sangue quando a lua cheia se aproxima.
Seguimos isoladas e a vida passa como se nada encontrasse um sentido satisfatório. Penso nisso, viajo por Ocean Vuong em seu Night Sky, mas confesso que não encontro saída. Sabe como é isso, Ardilla? É terrível… sabe quando nem a barata de Clarice dá jeito? É assim que sinto os dias, caminhando pelo meu cabelo que cresce desesperadamente; como eu imagino que também cresce sua barba anárquica.
A verdade é que o desespero é uma máquina de fazer controles. E eu odeio os esquemas, as estruturas que tiram a minha capacidade de inventar o óbvio. A necessidade de encontrar pedras pelo caminho é uma fonte de saudade sem limites. E eu ainda guardo um pouco daquele humor inútil que se encaixa em seu, ainda mais inútil, rigor aristocrático. Sempre tive problemas com seu desejo e paixão pela elite rebuscada que, ao fim e ao cabo, segue guardando os cadáveres da incoerência. Ainda assim, sei que morreria de tédio se seu mundo fosse exatamente igual ao meu.
Aproveito para avisar que os Correios voltaram a funcionar.
Abraços,
Amanda
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Este texto é o terceiro da série Cartas a Ardilla, de Vanessa Dourado.
Leia o primeiro: Cuba
Leia o segundo: Pandemia
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