2 Comentários
Ivanildo Lopes, morador da comunidade Lauro Vieira Chaves, em Fortaleza, mostra os entulhos do que um dia foi sua casa, destruída por causa da obra do VLT
(Fotos: Chico Célio)
Vale deixar claro, logo no começo dessa reportagem, que optamos em não ouvir as chamadas “fontes oficiais”, ou seja, ninguém dos governos federal, estadual e municipal (com minúscula mesmo!). Não nos interessa ouvi-los, porque já sabemos que vão repetir como papagaios o mesmo discurso pronto de sempre: “foi a Copa das Copas”, “trouxe investimentos infraestruturais para as cidades-sede”, “alavancou o turismo”, “divulgou o nome de Fortaleza, do Estado e do país para o mundo todo”, “aqueceu o mercado interno”, blá, blá, blá.
Perguntamos: tudo isso a troco de quê? Às custas da violação do que e de quem?
Para Arileda Fernandes, que foi diretamente afetada pelo megaevento, houve “descaso com a comunidade. Hoje, ainda me sinto prejudicada. A minha rua tá toda cheia de buraco, lixo, entulho…”. Ela, que mora na comunidade Caminho das Flores, em Fortaleza, na divisa entre os bairros Montese e Parangaba, teve a casa demolida por conta da obra do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que sequer ficou pronta para a Copa. Conta que a indenização do governo estadual foi irrisória. “Dois anos atrás mediram as nossas casas e nos chamaram pra negociar. Era pegar ou largar! Foram valores insignificantes. Reconstruí minha casa com muita economia, muita dificuldade”.
Reconstruída no mesmo local da anterior, mas agora com muitos metros quadrados a menos (o recuo foi de 6m contando da frente do terreno), Arileda ainda não pode voltar à nova casa, pois cuida de seus pais, um casal de idosos. Constatamos o porquê: a rua está cheia de crateras de 10 a 20 metros de diâmetro, um perigo para crianças e velhos se acidentarem facilmente. A obra, ressalte-se, está parada, pois o governo rescindiu contrato com a construtora que estava à frente do projeto! “A rua é escura, os postes é um na entrada e outro na saída. É só promessa, promessa, promessa…”, desabafa.
“Foi péssimo, meu fi”, diz com lamento que se percebia no tom de voz, do alto dos seus cabelos brancos e da pele marcada pelo tempo, dona Maria Conceição, moradora há 32 anos do Caminho das Flores, quando perguntada sobre a obra do VLT para a comunidade. “Nossa casa foi demolida e o dinheiro não deu pra terminar – e agora, tá nessas condições”, enfatiza, apontando para a casa inacabada. “Essa daqui não tem condições de voltar porque o dinheiro não deu pra terminar, essa dali também não”, salienta dona Maria, nos mostrando com o dedo mais casas por terminar na comunidade. De acordo com ela, muitas outras pessoas tiveram que deixar o local por não terem como levantar outra moradia com a indenização paga pelo governo estadual.
De acordo com Thiago de Souza, neto de dona Maria, “não havia necessidade de demolir, dava pra ser feito sem mexer com nenhuma casa”, uma vez que o projeto do VLT para aquela área é no formato elevado. “Foi uma série de violações de direitos o que fizeram com a gente. A estrutura da comunidade tá péssima, a nossa rua tá totalmente descaracterizada, cheia de buracos enormes”, completa o jovem.
Histórias parecidas com a de Ivanildo Lopes, que mora desde que nasceu, há 48 anos, na comunidade Lauro Vieira Chaves, no Vila União, fronteira com os fundos do Aeroporto Internacional Pinto Martins. Teve sua casa totalmente destruída e agora luta para reconstruir a vida numa alugada na mesma rua. O governo estadual dá-lhe, momentaneamente, 400 reais de “aluguel social” e oferece-lhe moradia no José Walter, longe dali. Ele resiste, quer ficar onde vive desde sempre. “Tenho esperança. Tô brigando pra isso! Pra mim, o legado da Copa vai ser mais uma favela criada em algum canto distante da cidade. Esses conjuntos (habitacionais) que o governo vai juntar gente de tudo que é canto. Mais uma favela criada, afastando as pessoas de seus lares, familiares, de perto de tudo. E tudo isso sem ao menos consultar nós moradores”, se lamenta o artesão.
Já dona Cássia, que vivia na comunidade dos trilhos há 42 anos, na Aldeota, não teve escolha: “A gente teve que sair removida, apesar da luta”. A moradora expulsa de casa – foi mandada a um conjunto habitacional no Passaré, “do outro lado da cidade”, diz ela – enfatiza o “real sentido da Copa”, na sua leitura: “tirar a massa pobre da região, já que a Aldeota tem um metro quadrado muito valorizado”. Também se queixa que a indenização foi muito aquém do que deveriam receber os moradores expulsos. Ou seja, centenas de milhões de reais para Acquário, Centro de Eventos, Castelão, obras faraônicas não faltam! Mas, para indenizar famílias despejadas, migalhas. “Minha vida mudou bastante aqui, deixamos pra trás muita coisa boa que tínhamos na comunidade”, reclama, com resiliência.
Todas as pessoas ouvidas acima foram afetadas pela construção do VLT de Fortaleza, obra que estava no “pacote da Copa”, mas não ficou pronta a tempo. Está orçada em R$275 milhões, sai da Parangaba e vai até o Porto do Mucuripe; tem 12,7 quilômetros de extensão e passa por 22 bairros da capital, atingindo diversas comunidades que moram às margens do percurso. De acordo com dados da Defensoria Pública do Ceará, são cerca de cinco mil famílias atingidas diretamente pela obra com remoções/ desapropriações; moradores que têm raízes e identificação com suas comunidades, com seus vizinhos. Mas o urbanismo predatório pouco se importa com isso. Aliás, para Debord (A Sociedade do Espetáculo), o urbanismo, em si, é nada mais que “a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário”.
O discurso oficial governista diz que o VLT é legal porque “vai atrair mais investimentos pro Porto do Mucuripe”. Reparem: expulsa-se milhares de famílias de suas casas e comemora-se a obra porque ela vai gerar mais grana. É o retrato perfeito da desumanização que vivemos nos dias de hoje! E – o que é pior! – cada vez mais naturaliza-se processos violentos como esse. No espetáculo, vale tudo para atender às exigências do deus-dinheiro!
Para saber mais sobre o processo violento do VLT, assista ao curta A comunidade que desviou o trem, do Coletivo Nigéria, em http://goo.gl/rFgSXO.
Jogando a desigualdade para debaixo do tapete
Mas não param por aí as violações da Copa. Foi preciso esconder o povo pobre da turistada, recolher compulsoriamente menores e moradores de rua para abrigos e “embelezar” superficialmente os arredores das arenas. “Foi passada uma maquiagem, como dizem, né. Digamos assim, fizeram a maquiagem a dois quarteirões do Castelão, porque mais pra lá (aponta para a área mais central do bairro), no começo do Cal (favela que fica às margens da Av. Paulino Rocha), só pra avenida que ficou bonito, porque mais pra dentro continua do mesmo jeito. Tem uma rua que é um esgoto a céu aberto bem aqui pertim”, denuncia Mazé Oliveira, que mora ao lado do estádio, no bairro Boa Vista, em Fortaleza.
Dona Francy, mãe de Mazé e proprietária de um bar a 100 metros do Castelão, relata que durante o megaevento, em dias de jogos, os moradores do Boa Vista não podiam atravessar para o Barroso, do outro lado da Av. Paulino Rocha, nem para o lado do Passaré. Seu Paulo Pinheiro, que mora no Barroso há 25 anos, disse que sua esposa “teve que levar o comprovante de residência até a barreira policial” para ele poder chegar em casa. Que estado de exceção é esse que vivemos e legitimamos? Muitos dão de ombros porque essa exceção não recai sobre eles, mas sobre os pobres, os oprimidos, os despossuídos. Aos insensíveis que não se solidarizam com a miséria alheia, com a violência social da desigualdade, peço a leitura do pequenino e visceral poema Intertexto, de Bertold Brecht, que finaliza assim: “agora estão me levando, mas já é tarde, como não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”.
Para o integrante do Comitê Popular da Copa, Roger Pires, apesar das principais violações do evento terem sido relativas ao direito à moradia e às zonas de exclusão (que impediu o livre ir e vir), o torneio levantou uma série de outras questões que precisam ser discutidas, como o cerceamento do direito ao trabalho, com vários ambulantes sendo proibidos de trabalhar por exigência dos patrocinadores da Fifa; o aumento da exploração sexual infantil; o pouquíssimo acesso às informações com os gastos públicos para o megaevento; e a comercialização de cerveja dentro das arenas, que até então era proibida pelo Estatuto do Torcedor (aqui não há nenhuma questão moralista com o consumo de álcool nos estádios. O que se traz à tona é o privilégio de uma corporação empresarial sobre o direito social, uma vez que a venda só foi liberada durante a Copa e somente porque a Budweiser, marca de cerveja estadunidense, era uma das patrocinadoras do evento).
A advogada e integrante do Coletivo Flor de Urucum e do Comitê Popular da Copa, Patrícia Oliveira, ressalta que a Lei Geral da Copa, “no entendimento de muitos juristas, feriu a Constituição em vários pontos”, porque tal lei criou, prossegue ela, “a área de acesso restrito da Fifa, que deveria ter caráter de restrição de comércio, o que por si só é uma violação à livre iniciativa e ao direito ao trabalho, restringiu o direito de ir e vir de forma geral, impedindo até mesmo o acesso de advogados às delegacias próximas ao Castelão, criou crimes temporários, o que nunca havia ocorrido no regime democrático, proibiu o direito de manifestação através de cartazes, faixas ou mesmo blusas dentro dos estádios”.
A luta pela superação do capitalismo e pela libertação humana
De acordo com Roger, passado o torneio, o Comitê vai continuar sua atuação, elaborando um plano de reparação das violações aos direitos humanos, para que quem violou seja responsabilizado e repare a agressão. Vai também levantar a discussão sobre a instalação de uma auditoria da dívida da Copa, com ampla participação da sociedade civil, para que “se passe o pente fino nas obras e nos gastos”. Ele conta que um dos grandes aprendizados no Comitê Popular da Copa foi sua forma de organização, “totalmente horizontal e sem hierarquia”. O integrante do Coletivo Nigéria ressalta ainda que “a luta tem de ser anticapitalista, porque no cerne da questão está o modo de produção capitalista, o lucro, a propriedade privada. A Copa é um grande símbolo do capitalismo e de como o Estado se submete a ele”.
A luta tem de ser mesmo anticapitalista! Mas não só, penso eu; também contra essa fé cega que insistimos em depositar no poder estatal – e em suas representações e instituições. O Estado é, em si mesmo, desigual e autoritário. Nasceu e sobrevive dessa desigualdade e desse autoritarismo. O desejado – por muitos – Estado socialista igualitário é impossível de acontecer, porque, sendo Estado, será sempre desigual e autoritário. A história está aí para não nos deixar mentir!
No que diz respeito à questão jurídica, o quadro é o mesmo: subserviência aos ditames do capital. “O que vem acontecendo em relação à perseguição/prisão de manifestantes, criminalização dos protestos e fortalecimento do aparato repressivo mostra uma face perversa da Justiça, sua forte relação com a manutenção do status quo”, afirma Patrícia. A advogada popular pontua a quem as leis servem: “É notável que as decisões se embasam muito mais em questões ideológicas do que por vinculação aos textos legais e às provas materiais, o que desmascara a promessa de segurança e estabilidade oferecida pelo Direito para a sociedade”.
A verdade é que o Estado – e todo o seu ordenamento político-jurídico – foi criado, em determinado momento histórico, para garantir que a desigualdade – advinda com o direito de propriedade – se perpetuasse, ou seja, para assegurar o controle e a disciplina dos que não tinham posses e o acúmulo de mais propriedades aos que já tinham. A violência social nasce aí e, desde então, é consentida pelo Estado e suas leis (Rousseau, A origem da desigualdade). O que o capitalismo fez foi aprofundar ainda mais esses parâmetros de exclusão e desigualdade. A Lei Geral da Copa – elaborada pelo Estado – somente reforça e comprova essa afirmação!
O movimento de contestação e superação ao capitalismo e suas ramificações (como os megaeventos) não deve ser feito, mesmo com toda a boa vontade do mundo, para o povo, a partir de uma cúpula, “os escolhidos” (algo quase messiânico, salvacionista), mas sim com o povo, a partir da enunciação, da pronúncia das massas (e não de meia dúzia de “revolucionários” que formam um núcleo central e “comandam” as pessoas como coisas, como boiada. George Orwell, em A Revolução dos Bichos, faz uma sátira contundente a respeito dessa hierarquia).
O ponto central é que se não for com o povo, a partir de sua fala, não pode libertar. A revolução que acreditamos é um processo gradual e vivo, dinâmico e mutável, não uma fórmula engessada há mais de século e meio, que pede líderes para enunciar ao povo, tirando-lhe a fala. O verdadeiro movimento de emancipação é, em sua essência, horizontal, do e com o povo, sob lideranças revolucionárias transitórias, efêmeras, descartáveis, jamais cristalizadas (Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido). Justamente aí reside a grande sacada da libertação humana!
*Publicado na Revista Berro – Ano 01 – Edição 02 – Agosto/Setembro 2014 (aqui, versão PDF)
MAIS NO SITE Copa em Fortaleza: A maquiagem que encobre o descaso