Berrando Poesia – Ana Amorim



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(Ilustração: Levi Noli/Revista Berro)

Nota da redação: A autora das poesias abaixo tem 15 anos e a publicação destes textos foi autorizada por sua responsável legal.

Caracol na mão

caracol é bicho devagar

e ao colocar os olhos

é preciso saber ter calma

entender que caracol tem seus processos

e seu eu não se importa com o ritmo dos outros

e sim com o seu próprio

quando machucado ou pensa que pode ser

é rápido

porque ferir é mais rápido

mais rápido do que seguir andando

machucar

arrancar

é mais rápido do que

curar

 

O tecido frágil e fino que é a vida

Rilke me inspirou em vários de seus poemas e citações

quando fala sobre o destino e suas tramas

são tramas finas e tão frágeis

que podem rasgar a qualquer momento

podem ser rasgadas naturalmente

pela morte

por términos e desencontros

decepções

tudo isso se rasga em um processo lento e entrelinhas

não é explícito

nem visível

acontece onde só a alma habita

o fio da trama da vida

fio esse que pode ser remendado

mas assim como um vaso quebrado

quando quebrado em pedaços nunca volta a ser o mesmo

a trama da vida também não

uma vez perdida, ou rasgada

não se há reparo

que faça voltar a ser o que era antes

a vida é assim

ao longo dela vamos sendo remendados

para poder continuar

mas nunca como nascemos

 

Olhar para dentro

respiro fundo

olho para o meu eu

para minha alma

alma essa que se separa do corpo quando olho pra mim

olho com olhos minuciosos

muitas vezes, olhos que julgam

já percebeu que é mais difícil olhar pra dentro sem apontar defeitos?

procurar defeitos em si mesmo é o pior erro que se pode cometer na busca

na busca do eu

na hora que o eu é encontrado

só nesse momento

não julgamento e sim acolhimento

acolher para transbordar

transbordar para compartilhar

compartilhar em palavras

compartilhar em ações

compartilhar de verdade

só se pode fazê-lo quando se encontra consigo mesmo

por isso olhe para si

não desvie o olhar

mesmo que cause espanto

não desista de si

não olhe em volta

só a si mesmo

  

Gritar sem vazio

é preciso entender que o ato de gritar

o ato de chamar não é fácil

assim como aceitar e olhar com mais intimidade a si mesmo

mas o grito é um ato vazio

se não vem acompanhado da aceitação

aceitar e falar é um grito com significado

aceitar o lado mais escuro do seu eu

aceitar seus erros

aceitar seu passado

aceitar suas emendas

aceitar e olhar de outro ângulo

tudo aquilo que não deveria ser aceito pela sociedade

pois então faça esse papel por si só

aceite-se

depois grite

e quando gritar

outros vão te escutar

  

Morte

morte é o quê?

eu tô descobrindo essa tal de morte

ela é sombria, gera tabu por onde passa

mas não representa o fim

representa uma das fases da vida

e não o fim

porque enquanto vida

se plantadas sementes

elas germinarão na morte

quando menos se espera

ela sai do sono e acorda

essa semente que germina dentro de mim

forma raízes, se bem cuidada

a semente é a mania de procurar músicas loucamente como meu pai

a semente é cuidar de plantas e usar metáforas da natureza

a semente é ser um pouco do que meu pai foi

a semente germina em mim, e em todos que amam meu pai e minha avó

a semente germina cresce e vira árvore

a morte é a quebra dessa raiz, que com tempo

germina, com tempo

e grande fica até que não cabe mais no corpo

passa pra parede

passa pro chão

passa pra tela

passa pro mundo

por isso escrevo

para tirar o peso de dentro

e jogar pra fora

é por isso que eu escrevo o que sinto

é com sentimento

é como se eu moldasse algo conforme eu escrevo

algo tangível

que eu possa pegar de fora e levar comigo se eu quiser

 

Campo Minado

uma bomba caiu

caiu, se jogou na minha vida

ou ainda no meu ser

depois disso nada será como antes

nada será igual

nada

a bomba foi a morte

que não tem hora nem dia marcado

não se pode ter controle sob ela

é viver pensando que a morte complementa a vida

e não é um castigo

depois da bomba

parte de mim foi levada com a morte

já não bastasse meu pai e minha vó

a morte levou a minha segurança

a morte levou minha tranquilidade

mas fez questão de deixar outras bombas ativadas

bombas essas que podem explodir a qualquer momento

hoje mesmo explodiu uma

a do controle

ah esse controle acha que pode mudar tudo e todos

não se deixe enganar como eu já o fiz

ele não pode.

depois que a bomba explodiu eu fui forçada a mudar

e desde então sou outra

aquela ana de antes da morte não existe por completo

existem pedaços

que se catados a tempo

podem ser colados de novo

junto com os novos que germinaram

afinal o campo minado é morte

é bomba

mas também é viver

viver de começar do zero

 

Debruçar no que meu eu sente

eu sinto falta

ao mesmo tempo eu sinto um vazio

é como se eu comprasse tudo no mundo mas nada tamparia essa dor

ela está escancarada

como um buraco negro

onde não se vê um fim

é isso o que sinto

nem sempre foi assim

sinto isso desde que meu pai e minha avó morreram

dizem que sinto muito por causa da idade

se é verdade não sei

apenas tenho certeza que a cada lembrança deles

a ferida aumenta

e nesse ritmo o medo também

  

O falar

falar é tirar de dentro

como mãos que percorrem o corpo todo

em busca do que falar

uma busca fácil

porque o corpo fala

o corpo é falante

o falar

é cura

é ressignificar

falar é medicinal

falar é sair do eu e passar pro outro

falar é sentir para saber ser

falar é ver o que sente e tirar de si

falar é compartilhar

é evitar as más ágoas

 

 Tudo começa com um gatilho

a todo momento eu posso ter um gatilho

do gatilho vem as crises

das crises o sentimento pesado de estranheza

toda vez é isso

toda vez tem choro e angústia

medo

medo de não acabar

medo de não passar

a ansiedade vai comendo a racionalidade

não existe pensamento claro

só escuro

no escuro que eu tenho vivido

 

 

RESpiro

respiro

eu hoje piro mais do que RESpiro

é tanta crise que faz perder controle

o pouco

a sobra

do que escorreu

do que foi pra longe

de mim

do meu alcance

por minutos

longos minutos

eu perco o RESPIR AR

sinto na pele

que transpira

que soa e ecoa a angústia

que parece amarrar o peito

o coração

a carne do ser

enquanto

na cabeça gira

tudo girando

como peão solto

ah e a alma

passeia

não sei se dentro do eu

ou fora

só sei que no fim

tudo volta

bem mais difícil do que veio

exalando angústia

medo

tristeza

raiva

eu me ordeno

respire

 

O caminho da angústia

o coração parece que pula dentro do peito

pula de angústia

pula várias e várias vezes

o trampolim é a ansiedade

que dá espaço e inicia todo o processo de pânico

é um desespero enorme

a cabeça gira e nao para

dá medo

o corpo não consegue sair do lugar

se sair

cai

tudo fica estranho e parece sem foco

o olhar cai

e não há deus que resolva a dor

a raiva

e que pare o trampolim daqui de dentro

a perna amolece

nada faz sentido

só o medo de não parar

de sentir isso

  

Controlar

ah esse ato de querer controlar

o controle é como uma corda presa à cintura do sujeito

que ao se perder, aperta mais

cada vez mais

até não aguentar

e largar mão de controlar

largando a corda que pressionava

quase quebrando os ossos

a carne

o corpo

a alma

largando a corda

larguei

de tentar controlar tudo

larguei

largo aos poucos

soltando a corda e respirando de novo

uma coisa é certa

fácil é escrever

difícil mesmo é largar

largar de se preocupar

largar de se sentir culpada

largar o passado

  

O papel da lembrança

lembrar de algo

seja ruim ou não

é essencial

seja para simplesmente sentir saudade ou ressignificar

eu passei por momentos difíceis

e ainda passo

minha avó e meu pai morreram

e depois disso as minhas lembranças

se tornaram tristes

pesadas

parece que eu estava olhando de um ângulo diferente

porque eu mudei

e quando se muda por dentro

o jeito de olhar as lembranças mudam

antes só lembrava do quão pequeno meu pai parecia

na última vez que o vi no hospital

no dia que ele morreu

tenho pesadelos e acordo desesperada

por simplesmente não conseguir fazer nada para ajudá-lo

o problema das lembranças é que elas já passaram

aconteceram em algum momento no passado e agora estão gravada na sua memória

o problema é não conseguir mudar

não conseguir controlar

o problema é que já passou e agora que seus corpos já se foram

não há como repeti-la ou evitá-la

esse é o problema da lembrança

ela parece um filme do qual você é o espectador no presente

do seu eu no passado

 

Mãe

Rosangela é mulher no melhor sentido dessa palavra

ela é forte, porque chora

ela fala por isso eu a amo

ela me ensinou tudo o que eu sei

ela ama a vida

e por isso a vida ama ela também

é sério, a Rosangela é a mulher que se diverte com qualquer coisa

que tem alma de criança

alma e sorriso

porque brinca, chora, se apavora

é curiosa pelo saber

é sensata porque sabe que não tem conhecimento de tudo e nem tenta

ela veio nesta vida para me ajudar

disso eu sei

ela é a luz no meu caminho

além de mãe, é mulher, é ser

sua alma se separa do corpo quando sorri

de tão forte e gostoso que seu sorriso é

chega a fechar os olhos

ela é amarelo de girassol

foi nisso que ela pensou antes de ser internada e foi com isso que ela voltou

é no caos que estamos vivendo que ela me acolhe

me acalma

e tudo que eu sou hoje é por causa dela

que fez questão de me criar curiosa

assim como ela

obrigada universo

por me dar uma mãe dessa

não é em toda vida que se tem essa sorte

///


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