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A entrevista a seguir destaca a realização do filme Vestígios Pré-Coloniais Cearenses. Buscamos entender as paisagens, as nossas origens, os pertencimentos e ancestralidades do povo cearense. Além disso, correlacionamos o tempo geológico da Era Cenozóica ao tempo histórico da Pré-História retratados no filme. O nosso entrevistado caracteriza a realização do filme e ressalta a sua importância no entendimento do território cearense no período pré-colonial.
O papo com Roberto Bomfim caminhou para a reflexão sobre várias temáticas: o desmonte do setor cultural no Brasil, a importância da iniciativa privada no apoio a projetos culturais, as dificuldades na produção audiovisual, as parcerias na produção de seus documentários, os projetos em andamento e a possibilidade do filme enquanto recurso didático em sala de aula.
Roberto Bomfim é cearense, jornalista, documentarista, gestor cultural e escritor. Seus filmes são pautados em saberes da antropologia, sociologia, geografia, história, arqueologia, dentre outros. Ganhador de editais e prêmios diversos por suas obras como o filme Charqueadas, que em 2012 levou prêmio de melhor documentário do VII Festival de Cinema de Cascavel (Paraná/Brasil).
O filme Vestígios Pré-Coloniais Cearenses foi realizado entre os anos de 2015 a 2019 e o seu lançamento ocorreu no Cineteatro São Luiz pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, com exibição gratuita em março de 2020. É considerado um resultado da essência do documentarista, que enquanto sujeito define-se: “Sou um cearense que adora História, sou apaixonado pela Arqueologia também.”
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De onde você vem e qual a sua trajetória?
Sou um cearense que adora transmitir história para todos os cearenses. Venho do planeta Terra, Brasil, Ceará, Fortaleza, e já desempenhamos há 20 anos a produção de trabalhos documentais e historiográficos que acometem várias ciências. Ora de empresas, de situações históricas do Ceará, de instituições e outros projetos meus. Vale ressaltar que o audiovisual hoje está bem próximo do cinema e produzimos essa linguagem, a tecnologia no final dos anos 90 favoreceu a produção. São estes trabalhos que produzimos hoje no Ceará, com muito esforço, com muita dedicação, com muita vontade de levar esses assuntos importantíssimos para o pertencimento cearense.
Sabemos que não é fácil trabalhar com cultura e com o audiovisual no Brasil e no Ceará e que, ao mesmo tempo, você não faz nada sozinho. É lógico que você tem equipe e constrói parcerias, então, destaque a importância das parcerias, quais foram e de que forma contribuem para esse trabalho?
Tudo que fazemos na vida não inventamos e temos que ter uma boa base de saber, de estrutura, de planejamento do trabalho, e ninguém produz um filme sozinho. Você precisa de profissionais responsáveis e comprometidos com a causa. Eu dirijo meus filmes; os roteiros, geralmente, todos são meus, além de produzi-los. Eu trabalho também. Mas, sem um bom diretor de fotografia não dá, sem um bom operador de câmera não dá, sem um bom produtor, um técnico de som, um operador de drone. Todos estão convergindo em um único trabalho que é o filme. A gente depende muito dessa equipe, essa equipe mais próxima. Temos hoje um desmonte no Ministério de Cultura, nossa Secretaria da Cultura (do Ceará) ainda é muito resistente (Lei Rouanet e o Mecenas). Temos (no Ceará) produtores culturais produzindo e ganhando recursos em detrimento de outros (lugares).
A cultura está em tudo, e as leis de incentivo provêm verbas que também financiam. Então, eu começo pelo estudo, depois formo a equipe e passamos a ir em busca de captar recursos. Juntando tudo, vamos trabalhar em prol da cultura e do audiovisual.
Ser culto não é ter dinheiro, há que se ter sensibilidade às diversas causas culturais, precisamos trabalhar uma mudança de mentalidade.
Eu vi o filme duas vezes e o cenário do filme nos faz voltar ao processo evolutivo do planeta e imaginar a realidade ambiental do Ceará com massas vegetais, rios caudalosos com margens vegetadas, povos originários que se deslocavam e exerciam seus rituais e modos de vida, conforme os relatos presentes no filme. Por que filmar o documentário Vestígios Pré-coloniais Cearenses?
Eu produzi outros documentários relacionados à memória da cidade de Fortaleza, outro que reconstruiu as charqueadas, depois o Acaraú rio das Garças e depois fiz o Neerlandeses sobre os holandeses no Ceará e, por último o caminho, a busca de ser cearense. Pensando e refletindo sobre nossas ascendências. Decidi fazer um projeto voltado para Paleontologia ou Arqueologia, nesse período produzi um piloto chamado Serra dos Macacos, com muitos achados pré-coloniais que nos levaram a aprofundar, buscando os cientistas que escreviam sobre estes assuntos no Ceará provenientes da UECE (Universidade Estadual do Ceará) e da UFC (universidade Federal do Ceará). Roteirizei o filme, pontuei alguns lugares na produção de um longa-metragem. Submetemos o projeto ao edital da Secult em 2016 e fomos contemplados com prioridade para evidenciar alguns sítios arqueológicos. A comunicação com as pessoas de cada localidade nos fez perceber encantamentos, lendas, desafios na preservação dos sítios arqueológicos.
Os caçadores e os mateiros encontram esses locais, mas de certa forma, alteram com fogueira, pichações e outras ações. É um desafio manter a preservação dos sítios arqueológicos, diante dessa mentalidade que não valoriza sua origem e sua ancestralidade. Nesse contexto, você e sua equipe envolveram os mateiros de cada local e os pesquisadores nessa narrativa do filme. Como ocorreu a realização das duas etapas, de campo e das entrevistas dos professores, pesquisadores e dos guias locais?
A narrativa ideal é que não tivéssemos apenas um especialista, mas ao nosso lado um arqueólogo – pesquisador. Pensamos em entrevistar aqui em Fortaleza, e com base neles, ir ao campo. Associamos a contextualização científica à realidade. Assim, conhecemos um museu ligado ao sítio arqueológico em Quixadá que deu o suporte à equipe. Escolhemos regiões para pontuar, a região central-norte e a litoral oeste, tendo em vista os diversos sítios arqueológicos cearenses, porque não dava para fazer todas as áreas.
Eu assisti ao filme e percebi que vocês rodaram muito, são várias imagens do carro na estrada do nosso sertão e do nosso litoral. E vi também algumas imagens panorâmicas usando o drone que é muito utilizado na Geografia para mapeamentos. Como você utilizou, diante desse cenário, as tecnologias tanto do drone, quanto de outras ferramentas no filme?
Para dar qualidade a um trabalho como este, a gente precisa além dos bons profissionais, pessoal da zoom digital, do Márcio Gaderna, de um grande diretor de fotografia, de um técnico de som e um operador de drone. As câmeras, o drone e demais equipamentos são fundamentais para que você tenha não só uma visão panorâmica, mas pontual do projeto Vestígios. Que mostre a entrevista com a pesquisadora Marselle e com o arqueólogo Agnelo Queiroz e as imagens que fizemos em campo. E se não fossem equipamentos de boa qualidade não teríamos o que tivemos.
Quando trazemos as imagens mostramos o Ceará e fazemos o link do hoje com o momento pré-colonial que se vivia naquelas condições de semiaridez e podemos refletir sobre os deslocamentos das populações.
A gente consegue entender um pouco da importância dos rios para orientação no deslocamento e para a sobrevivência. Além da vegetação e da questão climática que, possivelmente, não era tão acentuada a semiaridez nos sertões. A natureza foi fundamental para a sobrevivência percebida nos vestígios deixados nos sítios. Enfatizo que o filme destaca essa nossa origem cearense de deslocamentos pelos ambientes evidenciando territórios do passado e do presente, e assim podemos tentar entender essa sobrevivência?
Os pesquisadores se baseiam nas tradições para identificar os povos que migravam e por onde passavam. É possível entender essa sobrevivência com base nas tradições. Algumas teorias concebem como estes povos chegaram aqui, uma delas é que foi pelo estreito de Bering. Outra tese é de que foi pelo oceano migrando de ilha em ilha até o continente. Será mesmo? Tem sentido?
Na verdade Roberto, o que o foi apontado nos leva às salas de aula, nas aulas de História, de Biologia, de Química, de Português. Podemos fazer com que esse passado tenha sentido no presente, pois trata-se de nossos antepassados. Os povos originários cearenses conhecem suas tradições, seus ancestrais e nós temos, de certa forma, dificuldade em trabalhar isso em sala de aula e conhecer a nossa ancestralidade. Essa mensagem dos nossos povos originários é muito valiosa e permite por meio do filme que reflitamos sobre nossa origem familiar, biológica, de deslocamento. Entrando na questão de cearensidade, é uma marca sua exercer vários papéis, seja nos bastidores ou protagonizando as narrativas. Como você dá conta de exercer papéis de narrador e diretor?
Você pode trabalhar de diversas formas um assunto no documentário. Quando eu participo vou como um aprendiz, vivenciando, não é uma aventura por aventura. E vou perguntando, pois os meus trabalhos são voltados para todas as classes sociais. Então eu não sou nem tão coloquial nem tão científico. Minha participação é aprendendo, narrando ou por trás das câmeras. Além dessas, tem outra forma de narrar só com imagens, e a mensagem é passada. Trazemos uma leitura de uma realidade. O ser cearense, por exemplo, foi um projeto filmado nas minhas andanças.
E foi algum tipo de promessa que você fez?
Não, eu queria esta viagem introspecta e fiz no meu Ceará. Deu um documentário, entrevistei meus amigos da academia. E a História é contínua e está acontecendo.
Você intenciona algum projeto de filmar uma das nossas origens que é a população negra?
Realmente sim, já estou com quase quatro anos pensando, escrevendo, dialogando com pessoas que trabalham manifestações culturais da nossa negritude. Vindos inicialmente de outras províncias. E, o mais interessante, é que somos muita coisa e temos sangue negro.
Vamos acabar de vez com essa história de que no Ceará não temos negros. Vamos trabalhar com esse pertencimento negro com pesquisadores e terrenos quilombolas de Pacajus, de Coreaú, entre outros.
Temos a contextualização do cenário mundial, brasileiro e cearense. Eu vou em cima de quem tá estudando, isso é a pré-produção. Existem várias verdades, a gente tenta aproximar essas verdades no Ceará negro. Eu falo nos próximos vestígios na perspectiva contemporânea desses conhecimentos.
Fico feliz e na torcida para que possamos trazer os vestígios de nossos ancestrais negros e negras que passaram por aqui. Espero que esse filme tenha vida logo. O seu olhar é muito abrangente e dialoga com as várias áreas do conhecimento. Em relação aos seus projetos, como você enxerga o seu filme sendo trabalhado nas salas de aula? O que você diria aos professores e professoras sobre o diálogo com o seu filme nas aulas?
O filme promove o pertencimento das populações dos sítios, e a arqueologia social inclusiva está presente e causa várias reflexões. E quando você apresenta para uma determinada série, sendo bem conduzida pelos professores, o filme serve de orientação não apenas científica, mas de mudança de pensamento, dando importância nas raízes.
Eu reconheço várias possibilidades do filme, e ao mesmo tempo, ressalto alguns entraves curriculares que priorizam, muitas vezes, a escala nacional em detrimento da escala estadual. Que possamos encarar esse desafio diante da limitação curricular. A nossa intenção é divulgar esse trabalho apontando o filme enquanto recurso pedagógico, a fim de fortalecer o nosso pertencimento. Eu sou uma eterna aprendiz em fazer essa conversa. Agradecemos pela disponibilidade e pelo seu trabalho.
Me sinto honrado pelo convite. Estou aprendendo, estou lapidando o saber. Te agradeço, pois foi muito importante, e a sua sensibilidade é relevante para que possamos continuar esse trabalho. Fazemos porque gostamos e somos idealistas. Me chamem para bater um papo sobre os meus filmes! Os filmes são de todos os cearenses.
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Rosilene Aires é professora de Geografia e comunicadora no canal Rosi Culturando. Esta entrevista foi realizada como atividade do curso de Comunicação Popular e Marketing Digital, facilitado pela Revista Berro, no Centro Cultural do Grande Bom Jardim (CCBJ).
Esta entrevista pode ser vista na íntegra no canal Rosi Culturando.