Entrevista Zaccone: “A função do Estado passou a ser contemplar somente os interesses da ordem econômica” (parte II)



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(Foto: Joana Borges)

Zaccone supõe um modelo brasileiro de legalização das drogas que contemplasse os mais afetados pela política proibicionista, aborda a questão da desmilitarização e fala também da importância da organização comunitária, coletiva.

Artur Pires: Como se daria o modelo de regulação antiproibicionista? Como funcionaria um modelo satisfatório?

Zaccone: Hoje, temos duas experiências em andamento. A de estatização no Uruguai e a de privatização nos Estados Unidos. Eu, sinceramente, acho que o Estado não deve se intrometer na produção e no fornecimento de drogas, porque isso não é função dele. Seria como se nós estatizássemos a produção e a distribuição de bebidas. Então, no marco do sistema capitalista, não existe um outro caminho a não ser regulamentar isso. Evidentemente que existem questões que se colocam: no caso do Uruguai, foi uma necessidade política, porque a decisão foi uma decisão política do governo; diferente dos Estados Unidos, onde a decisão veio através de plebiscito.

“Eu particularmente sonharia com a possibilidade de escolhermos o modelo que contemple esses que são os acionistas do nada históricos (os traficantes varejistas das favelas), né, que sempre operaram a ponta desse processo, que sempre sofreram os efeitos negativos da proibição”

Eu acho que a forma como nós vamos chegar à legalização vai demarcar como vai ser o modelo. Não tem como a gente imaginar um modelo antes de se estabelecer no Brasil um amplo debate acerca disso. Temos que escolher o modelo brasileiro. Eu particularmente sonharia com a possibilidade de escolhermos o modelo que contemple esses que são os acionistas do nada históricos (os traficantes varejistas das favelas), né, que sempre operaram a ponta desse processo, que sempre sofreram os efeitos negativos da proibição: que eles sejam contemplados com a possibilidade de crescerem nesse negócio. Então, acho que poderíamos formar uma certa reserva de mercado, digamos assim, para que essas pessoas possam produzir ou comercializar, ou produzir e comercializar essas substâncias como uma certa forma da gente contemplá-los no mercado econômico, né!

Artur Pires: Eu acho interessante quando tu diz que a ideia de crime organizado é uma construção social feita no sentido de criminalizar um grupo social específico, feita no sentido de construir o arquétipo do criminoso, né. E alguns autores, como o Debord (A sociedade do espetáculo) e o Foucault (As redes de poder), dizem que a máfia não tá mais separada do Estado; a máfia e o Estado é como se fossem uma coisa só, um emaranhado de interesses escusos e afins, assim, né (mostra os dedos entrelaçados). A gente queria que tu falasse um pouco sobre isso, comé que tu vê isso?

Zaccone: É porque a função do Estado hoje passou a ser contemplar somente os interesses da ordem econômica. Isso é não é nenhuma novidade, porque historicamente o Estado deveria contemplar outros interesses além da gestão dos negócios, mas não faz. Quando o Estado passa a ser o gestor dos negócios privados, tanto os da legalidade quanto os da ilegalidade – quando você concentra a repressão em relação a uma ponta do negócio, você tá fazendo a intervenção daquele mercado e de certa forma gerenciando. Vamos supor que o Estado contemple a repressão em qualquer ambiente em cima de uma facção, ou de um determinado segmento desse mercado ilícito; evidentemente, quando ele faz isso, ele tá contemplando o crescimento da outra facção, do outro grupo, então isso faz com que o Estado acabe participando da gestão desses negócios, mesmo através do aparelho repressivo, quando ele concentra a repressão a determinado grupo. E, ao mesmo tempo, o Estado reforça a lavagem desse dinheiro, uma vez que, pô, esses capitais acabam desaguando no sistema financeiro. E esse neoliberalismo que coloca o estado mínimo na intervenção da economia, quando o banco quebra não tem essa não, o Estado vai lá e dá aquele aporte necessário.

“a função do Estado hoje passou a ser contemplar somente os interesses da ordem econômica”

Então, quando a gente fala dessa gestão que o Estado faz do sistema financeiro, evidentemente não estamos falando só dos fluxos de capitais do mercado lícito, mas dentro do sistema financeiro também têm os fluxos de capitais do mercado ilícito. Então, acho que é nesse sentido que a gente possa dizer que os estados e as máfias estão de mãos dadas.

Artur Pires: Tu sempre fala que as polícias brasileiras ainda têm muitos resquícios da ditadura. Como se ainda vivêssemos sob uma ditadura, né. E é muito claro perceber isso: tortura, polícia que mais mata no mundo, tu falou aí que só no Rio e São Paulo as polícias mataram em 2011 mais do que todos os outros países que têm pena de morte, né. Tá muito claro que na formação policial eles são treinados para combater o inimigo interno. Brasil, Chile e Nigéria são os três últimos países que ainda têm esse modelo militar de polícia. Então, eu faço a mesma pergunta em relação a guerra às drogas: a quem interessa que esse modelo militarizado de polícia ainda seja mantido, né, visto que ele é um modelo da morte?

Zaccone: Eu acho que o grande interesse está em ter essa guerra como um dispositivo de controle das classes perigosas (fazendo aspas com os dedos ao usar essa expressão), daqueles que podem em algum momento não se resignarem com esse estatuto jurídico-político, com essa gestão do Estado, e que possam em algum momento se rebelar contra isso tudo. Aqueles que não estão contemplados pelos benefícios maiores desse negócio. Então, fazer o controle dessas classes… por exemplo, a UPP no Rio de Janeiro: a instalação das UPPs no Rio vêm no sentido de livrar a população das favelas do jugo do tráfico de drogas, então, o dispositivo que é contemplado para que se autorize o projeto militarizado de ocupação das favelas é a questão das drogas.

“a gestão de um modelo de segurança pública militarizado necessita de uma guerra, né.”

Então, acho que a gestão de um modelo de segurança pública militarizado necessita de uma guerra, né. Talvez o Brasil vá ser o último país a abrir mão da guerra às drogas porque sem guerra não há inimigos, e sem inimigos não há a construção de um modelo repressivo – e esse inimigo sempre foi alvo construído e útil na nossa história, porque é a partir da definição desse inimigo, seja os de Palmares, de Canudos, do Araguaia, seja os traficantes da favela, você vai autorizando que o autoritarismo do Estado brasileiro se coloque a contemplar a gestão dos negócios e de todos os seus ciclos, né, seja do café, do ouro, da cana e dos grandes eventos, sempre reprimindo aqueles que podem atrapalhar porque não estão resignados, não estão se enquadrando no pacto conciliatório.

Sarah Coelho: Eu queria fazer só uma pergunta: a gente tava falando sobre o olhar que você tem sobre as pessoas que estão sendo criminalizadas. E aí vem o olhar sobre a favela, né, que a favela não é só lugar de pobreza, é o lugar de drogas, ilegalidade, violência… e a construção social que se faz disso, até a mídia entrando muito forte dentro desse processo. E aí tem o recrudescimento dessa política de segurança social, né, onde os policiais têm que reprimir essas classes perigosas (fazendo aspas com as mãos), digamos assim né, e aí essa população que está dentro dessas comunidades não reconhece no policial essa figura de proteção; ao mesmo tempo há uma total deslegitimação da justiça, das leis, que não é uma instância capaz de trazer resultados, né, até porque não há interesse nisso. Então, essas populações acabam passando por um processo de individualização mesmo, achando quem tem que fazer justiça com as próprias mãos e tudo. E aí a gente tem experiências como essas da associação (de vítimas de violência policial). Para vocês, policiais, faz diferença estarem lidando com uma comunidade que é organizada, que tem uma força comunitária e outra que não tem essa organização forte? Comé que vocês veem a importância dessa organização, de não ir pelo caminho da individualização, e se isso faz a diferença realmente?

Zaccone: Faz, claro! Porque se a criminalização é uma construção política, você vai ter contenção desse processo no campo político. Eu vi isso no caso do Amarildo. Eu acho que uma das coisas que mais repercutiu no caso do Amarildo foi o fato de ter ocorrido na Rocinha, que historicamente é uma favela com associação de moradores forte, com movimentos sociais, com diálogo constante com o poder político. Tivesse Amarildo desaparecido da mesma forma numa comunidade que não fosse tão politizada como a Rocinha, eu acho que ele não teria a mesma repercussão. Então, acho que quanto mais comunidades faveladas, os guetos se organizarem e conseguirem estabelecer diálogo com o poder político, diálogo na forma da cobrança, da reivindicação, na própria organização no que diz respeito às suas pautas, esse processo de criminalização tem mais chance de ser reduzido, contido. Isso é importante!

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