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“… que nada era inédito, estava tudo reverberando nas ondas do mundo, mundo, vasto mundo, desde sempre e para sempre do infinito?” (Cellina Muniz)
Era um sábado. Não um sábado como outro qualquer, que você vai ao supermercado fazer as compras da semana, e se tiver sorte, ainda corre o risco de pegar alguma promoção. Porque a coisa está russa: mais miséria, mais desemprego e menos alimento no prato de cada dia. Não. Não é um sábado que você tira para organizar os armários, as gavetas… a vida. E joga os papéis que se acumularam nos dias mais banais. Não. Nāo é um dia que você deita na rede ociosamente e lê o livro de contos da maravilhosa autora Cellina Muniz e deixa sair, sem nenhuma vergonha na cara, aquele peido habitual. Como bem fala o K de “Catrevagens e Cotovias”. Até porque não há mais ninguém, além dela mesma. Nāo. Era uma tarde que trazia o cheiro das lembranças mais sacanas, inesquecíveis e doídas. Tudo reverberando nas ondas desse mundo cão. Uma melosa tarde com muito riso, alguns disfarçadamente, outros nem tanto, mas com a saudade que berrou com mais força apertando o peito. Estavam quase todos lá, reunidos num bar. E tem lugar melhor pra encontrar os amigos? Até tem. Mas estes amigos são antigos. São décadas de muito fulerismo, tiração de onda e muito afeto. São delirantes mancebos que se reconhecem no olhar, na gargalhada mais frouxa, na palavra dita e não (mal) dita. São aqueles que juntam os vis metais para degustar a última cerveja. Ou não. Há sempre mais uma no meio do caminho…
E…
Repentinamente, passou-se um ano e lá estavam eles, nesse sábado, numa manhã com cheirinho de terra molhada, nas artimanhas da vida, entre um papo e outro, articulando uma combinação para celebrar a partida do grande e saudoso amigo CJ, logo mais, ao entardecer. Se encontraram no bar do Martins, em frente àquela praça que tantos viram corpos esparramados pelas balas perdidas do tráfico e da violência, em pleno Benfica. Mas quem disse que a praça ainda não é deles? Algumas vezes, ainda se atrevem a fazer da praça aquilo que sempre fizeram. Todos à mesa, com o copo em punho, brindaram a despedida tão repentina do amigo. E com direito a rodadas de pizza porque era o prato predileto do amigo que se foi. Alguns chegaram na hora marcada, final de tarde, outros foram se aprochegando ao cair da noite. Alguns arrastando novidades trazidas pelos ventos de alhures. Com direito ao diário de bordo e notícias de amigos da Ilha Grande. Trouxeram consigo a nostalgia e as palavras que burburizavam entre cada sorriso.
Ela e um dos amigos, o que fora turistar na Ilha Grande, tomando aquela pratinha, quando outro aproximou-se e sentou-se para colocar também a conversa em dia. Resolveram os dois fazer aquele brinde. Ela, entretidamente, lia as anotações da viagem do amigo enquanto brindavam.
– Um brinde ao nosso amigo CJ!
E levantaram os copos de punhos em riste, como no calor da emoção, os copos se tocaram sofregamente tirando um som do trincar das partes de cada mão. E só escutou a poeira que o gesto se espalhou pelo chão. O ranger de uma das partes se chacoalhando pelo piso rasteiro que caiu de uma das mãos. A outra parte ficou intacta, rente, sem nenhuma fissura, na palma da mão do amigo em questão. Nas palavras, não cabe a sensação que foi admirar tal ação. Eles entreolharam-se e caíram na maior gozação.
Ela levantou-se e foi ao banheiro e deu de cara com uma amiga que há tempos não via. Conversa vai, conversa vem e todos foram se indo, partindo para suas vidas latentes. Quando deu por si, já não havia uma réstia de gente. Somente garrafas vazias, embalagens de pizza e copos com as marcas dos lábios, da saliva serpenteando as beiradas. A amiga a levou a um bar, na lateral do Martins – O Caverna – que em sua cabecinha desmemoriada era novidade com sensação de um déjà vu. Aí, não deu outra, acabou tomando algumas cervas, a amiga se despediu na calçada e ela seguiu em frente, rumo de casa. Amanheceu sem saber como chegou em sua cama quentinha e cheirosa. Somente lembrou que caminhava sozinha na Avenida Treze de Maio, totalmente deserta e morna. Sem um pingo de gente nem para aterrorizá-la, fingindo uma breve aproximação e a deixando com medo de ser assaltada. Nem isso, graças à Deusa, mãe-natureza! Mas, ela, antes de sair de casa, resolveu que nada levaria porque não daria chance a malandro perdido na selvageria da vida. Ela que tantas vezes fora vítima de roubos de toda modalidade. Agora, já não era tão ingênua ao ponto de entregar o ouro ao bandido tão facilmente.
Mas o final do mês chegou e trouxe com ele as tão sonhadas e desejadas férias. Ela fora matar a saudade, que não cabia nela, dos quatro pontinhos de luz que vieram para iluminar a sua tão pacata vida. Vieram lá do Sampa, trazendo novidades em cada riso, em cada olhar. Ela não quis outra coisa, se não curtir adoidado os braços de cada um. Um quarteto parada dura que arrancou dela o mais cintilante sorriso. Chegariam também a amiga-escritora de Natal, que sempre passa suas férias com sua família em Fortaleza, como também o amigo que mora na Ilha Grande, mas o carro pifou no meio do caminho não chegando a tempo para o lançamento do livro da amiga-escritora.
E eis que chega o dia do lançamento do livro “CONTOS DO MUNDO DELIRANTE”, da amiga que trazia delírios da Jerimulândia. Era uma terça-feira estrelada com um sorriso escancarado da lua. No mesmo bar: o Martins. Ela chegou atrasada, por motivos bem convincentes, ou não. E se explicou com a amiga-escritora. O microfone já estava aberto para quem quisesse poetizar. O primeiro foi aquele que Ícaro, zumbizando, disse com sua voz forte e cênica, o conto “CATREVAGENS E COTOVIAS” que foi mais ou menos assim:
“Então, depois de sete anos e três ínguas, além de duas dores de dentiqueiro, encheu o saco e pensou: quer saber? Agora eu vou peidar pra ela. Mandou-a pastar e foi desfrutar das novas tecnologias e se inteirar dos aplicativos de relacionamentos amoroso-sexuais disponíveis nos novos dispositivos. Alguém há de me querer, suspirava, dando um peidinho casual na solidão de sua rede.”
Em seguida, ela, que há muito tempo não encarava um microfone, mas até seus outros olhos havia levado na bolsa, resolveu ler um conto também. Mas o nervosismo e aquele falo em sua frente, ela só tinha vontade de fazer algo nada apropriado para o momento. Pegou o microfone e começou a ler, mas o bicho não tinha retorno. Mexeram lá, mexeram cá, e nada! Resolveram mudá-la de lugar porque ela é uma pessoa cega e o bar tinha uma luz sombria. O som insistia em não sair, como se fosse aviso para ela desistir. Mas a amiga-escritora deu logo um jeito para ela continuar a leitura. Depois de quatro tentativas frustradas, a amiga pegou o microfone e o amigo, aquele que leu “Catrevagens e Cotovias”, pegou a luzinha do celular e iluminou o livro para ela soltar a voz. Leu o maravilhoso conto “ O OPERÁRIO-PADRÃO”:
“Ele parou de novo, para tomar fôlego antes de prosseguir na narrativa. Eu olhava distraída a praça em frente, com seu movimento rotineiro, observando o mundo acontecendo e querendo reter aquele instante. O homem que vendia água de coco na parada de ônibus; a mulher que falava risonha ao celular; o rapaz bonito que sumia com passo acelerado; o senhor que conversava com seus amigos imaginários. Todos ali, com suas intensidades muito particulares. Que preocupações e anseios passavam por suas mentes?”
Ela terminou a leitura. Em seguida, foi o amigo cabeção que logo pegou os livros e foi distribuindo sobre as mesas dos presentes que ali estavam. Com uma desenvoltura de um bom entendedor da arte dramática, foi vagueando por entre as mesas e as pessoas, dilatando o seu vozeirão. E berra com todo o ar dos pulmões: QUEM AGUENTA MAIS UM GOLLLLLLPEEEE? E foi seguindo a leitura…
“Eu já ia me lembrar do título, mas o golpe violento na minha barriga não me deixou
atinar com nada. Nada. O nada. No começo, era o nada. Antes do verbo. O caos. Para que
a Deusa foi inventar homem, Cascudinho?
…
A dor fazia luzir mil cores, de mil tons. Talvez fosse assim o caos, no princípio de tudo, antes do verbo, antes do homem criar sua tradição de guerra, de sangue e de dor. Sua tradição de vontade de poder…”
Ao terminar a dramatização, foi recolhendo os livros que foram distribuídos por entre as mesas. Agora, a voz era da própria autora. Fez o fechamento daquele sarau, seus eternos agradecimentos e chamou o mais fulerístico de todos, um dos editores da Edi!bar. Ele agradeceu também e recitou uma de suas poesias – O DIÁLOGO.
“sem beck não
tem beckground
dormi de um porre
acordei de um tapa
vida boa
vida à toa
dia de muita luz
tapioca e cuscuz
só um lembrete
tomar um sorvete
na madrugada
cerveja gelada
vou me danar
no paladar
águas de março
flores de abril
agosto, vento a gosto
sol, b-r-o: bro.”
E como era de se esperar, como tudo tem seu fim, foi-se dando o findamento do lançamento do livro, mas tinha que ser registrado, numa foto, todos que estavam presentes. A escritora chamou todos os amigos e ficaram ao lado da parede.
Vamos nessa, galera, bater uma foto!? Aí, alguém berrou:
Olha aí, o baculejo!
Foi só um mote para todos ficarem em posição de baculejo, ou quase todos, para a foto ser tirada e não restar dúvidas.
Mas quem nunca foi baculejado na vida?
Somos baculejados diariamente em nossas vidinhas quase miseráveis. E, com certeza, muitos dessa foto de zombaria já foram também. Os baculejos podem acontecer nos melhores momentos da vida, ou piores, mas tudo vira uma pura pegação. Ou não, para os mais beatificados.
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