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“Será que todos os dias são ocos?”. Essa era a pergunta que Eleutério fazia, repetidas vezes. A sensação, o vazio no peito, a seu juízo, se alastrara, a ponto de sentir falta de o coração bater; dos borborigmos, das vísceras se rebulindo por dentro. Não se sentia mais. No entanto, um paradoxo, não queria arranjar explicação; distraía-se, num desligar constante, com medo de enfrentar a incerteza e, por conseguinte, a dor. Na verdade, não queria passar dias e dias ruminando o que lhe teria ocorrido, em que momento se perdera, para ser um sujeito apático assim.
Na infância, por exemplo, encantava-se com a beleza das flores, dos pássaros – e como amava flores e pássaros, os benditos seres irmãos. Tinha, inclusive, um de estimação, o Muriçoca, de tão pequenino que era; vinha, no fim de tarde, pedir a benção, chafurdar e bebericar uma mistura de água, pão e massa de milho, que dona Luzia preparava. Via muita formosura nisso. Enternecia-se, com o olhar contemplativo e compassivo; e vagueava, de modo proposital – e felizmente perdido. Fosse o que fosse, e se penitenciava por isso, hoje não era tocado mais por nada. Tinha dúvida de sua existência, se era miragem num vasto deserto, quanto mais de Deus… Como um boi fujão, tocava na direção de sabe-se lá o quê, com mais um bocado de obrigações que lhe pusessem nas costas, e ia.
“Ganha o rumo do vento!”. Essa era a determinação de seu pai, Licurgo; homem constrito, abatido, relapso de tudo. Falava e, com a boca cheia de bílis, respingava cólera, desolação. O intuito precípuo era ver o filho longe, fora de suas vistas, porque não teria de dividir o pão, a casa e os parcos haveres. Mandava tomar o rumo do vento, quando, quase sempre, se aborrecia. Mandava também como conselho, descarrego; e o fazia nos míseros momentos de conciliação. Tentava domar a falta de tino de Eleutério, achava. “Toma tento, menino!”. “Deixa de frescura, avia!”. Sem ver nem para quê, dizia o que queria, a muque, e cortava a conversa com uma lapada nas costas, um “vai-te embora, cabra!”, de revirar o cérebro.
Eleutério, coitado, insistia em manter contato com o pai, que nunca lhe dera atenção. Achava-se, além de tudo, só no mundo, porque a avó, dona Luzia, já tinha dias próximos para morrer, supunha. Com isso, mais um abandono, não teria a quem recorrer. Pensava que pensava racionalmente, mas isso, em si, era algum sentimento, e não compreendia.
Tendo se apropriado de tal solidão, por todos os infortúnios de que desconfiava viver, entregara-se ao porvir. Já não se alimentava que prestasse; o de-comer dependia de uma incomum coragem ou do suporte da avó. Morava com a avó, mas era como se morasse em outro bairro, ou mesmo outra cidade, de tão difícil o encontro. Pesava sobre as retinas de dona Luzia, sobre seus ombros cansados, a busca por alguma solução.
Há meses Luzia não dormia, planejando conter o rojão. Passou, então, a montar uma casamata logo à frente do quarto do neto. Velava seu isolamento, com o amor a se inserir, ali, por osmose – impressionava-se com a ideia de transpor essa força vital. Espalhava plantas e flores pela casa, até a rua; imprimia um caminho de luz. Arejou e pôs cor no que antes era árido. Aos poucos, Eleutério frequentava o seu lar. Ia do quarto para a cozinha, da cozinha para a sala; e, se achegando, sem intermitências ou pressões, reconquistava as minúcias do lugar.
Um dia, como se despertasse do marasmo, reparou que um beija-flor havia entrado em casa e estava, a cerca de um metro, sorvendo o néctar da flor. Bailava no vento, suspenso. Brincava, serelepe, em acrobacias. Quedou-se sereno, com o ir e vir do beija-flor; uma infinidade a seu favor. Lembrou-se do Muriçoca; mas mais parecia um exuberante cavalo alado, vigoroso, imponente, conduzindo o tempo; um ser de luz, muito além do que pudesse conjecturar. Intuiu, de imediato, o que havia desprezado, a singeleza e a imensidão. Foi à cozinha; passos firmes, decididos. Pôs o pó do café no filtro, depois na chaleira. Esperou apaixonado. Sorriu. Refletiu que talvez pudesse, agora, tomar as rédeas do imponderável; a glória e o tempo.
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Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.