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Tecnologia e contemporaneidade
A passagem do século XX para o XXI foi marcada por diversas transformações sociais que impactaram de forma vertiginosa os comportamentos e os modos de vida dos sujeitos na contemporaneidade. Tais mudanças estão atreladas ao acelerado desenvolvimento da tecnologia e a forma como esta vem atravessando as relações humanas, repercutindo em novos hábitos e estimulando formas inéditas de ser e estar no mundo.
A tecnologia surpreende não apenas pelos reluzentes artefatos em constante desenvolvimento, tais como a inteligência artificial, a robótica e os avanços biotecnológicos que prometem a cura para doenças genéticas que afligem a humanidade. De acordo com a pesquisadora Paula Sibilia, na sua obra O show do eu: a intimidade como espetáculo, todo esse maquinário inaugura, também, uma notória mutação das subjetividades, o que implica dizer que as formas de se relacionar consigo, com os outros e com o mundo já não são mais as mesmas. Assim, a criação de uma cultura digitalizada determina o surgimento de novos valores e diferentes representações simbólicas entre os sujeitos.
O avanço tecnológico ao longo dos séculos, bem como seus impactos na cultura, não ocorreu de forma linear, tendo havido uma heterogeneidade de investigações tecnocientíficas concomitantes que modificaram (e vem modificando) a economia e a sociedade como um todo. As pesquisadoras Priscila Alves e Deise Mancebo, no artigo Tecnologias e subjetividade na contemporaneidade, pontuaram que durante os séculos XVIII e XIX o desenvolvimento tecnológico concentrou-se nos avanços de tecnologias de energia e metalurgia que possibilitaram a expansão do capitalismo através das fábricas e da produtividade em massa dos bens de consumo, modificando as concepções e o ritmo de trabalho humano. Em meados do século XIX e durante o século XX as tecnologias referentes à eletrônica desencadearam uma verdadeira revolução no âmbito da comunicação e da informação, alterando significativamente as noções de tempo e de espaço, bem como o sistema de representação do mundo, a relação do homem com a vida, com o pensamento e com o trabalho.
Para aprofundar a compreensão de tal transição e refletir sobre seu impactos no tecido social e nas formas de subjetivação contemporâneas, faz-se necessário, num perspectiva deleuziana, resgatar as nuances que envolvem a transição da sociedade disciplinar para a sociedade do controle. A organização social presente entre os séculos XVIII até início do século XX funcionava sob a lógica da disciplina: controle dos corpos através de um sistema de vigilância que, por sua vez, encontrava nas instituições (família, fábrica, hospital, prisão) o lugar de organização de tais confinamentos e consequentes sujeições. A crise de tais instituições (constantemente se “reformando”) ocorre de maneira concomitante e está atrelada ao surgimento de novas formas de controle e poder na cultura.
Tal controle não mais acontece na duração e vigilância de um sistema fechado, mas acontece a todo instante, ao ar livre, numa lógica introjetada (e codificada) que vai além das paredes das instituições, mas está presente e articula outras formas de relações sociais. Como exemplo disso, o filósofo francês Gilles Deleuze aponta, em Conversações, a própria relação com o dinheiro, que deixa de ser uma literal moeda de troca e passa a operar como trocas codificadas e flutuantes.
A evolução tecnológica teria assim como decorrência máxima a expressão de uma verdadeira mutação no capitalismo. Nessa nova ordem, o foco do capital não paira mais sobre a produção, mas sobre a venda do serviço (produto), fundamento base da lógica do mercado que, por sua vez, encontra no marketing empresarial o instrumento capaz de exercer o perverso controle social de forma contínua e ilimitada através do consumo. Não obstante, a noção de privacidade da informação pessoal sofre sérios abalos, pois o rastreamento dos interesses particulares são muito valiosos para o novo mercado digital.
Ainda segundo o filósofo, a metáfora do confinamento dá lugar à metáfora da dívida: sujeitos escravizados pela sedução do consumo e destituídos de uma consciência de coletivo, pois a lógica de meritocracia presente no mercado (e também na educação) desarticula as insurgências de movimentos coletivos de resistência, uma vez que a empreitada da competição não mobiliza a crítica ou formas de oposição ao mercado, mas sim uma reivindicação pela imediata inserção e desfrute do mesmo.
Assistimos, assim, à instituição e crescimento de uma sociedade de consumo exacerbado que modifica os processos de trabalho, aprofunda desigualdades sociais, bem como, intensifica experiências subjetivas marcadas pela transitoriedade, rupturas, caos, descontinuidades, competição, individualismo e consumo.
Na passagem do século XX para o XXI, podemos compreender que um conjunto de novas forças e hábitos suscitaram o desenvolvimento de modos inéditos de ser e estar no mundo. Essa importante transformação histórica aponta, sobretudo, para uma notória mutação das subjetividades. Paula Sibilia ressalta que a lógica da velocidade e do instantâneo característicos das novas tecnologias subvertem antigos limites de tempo e espaço e constroem profundas implicações nas experiências cotidianas dos sujeitos, incluindo uma drástica transformação das noções de público e privado que parecem não mais funcionar como antagônicos. De acordo com a autora, a modificação na forma de viver e conceber a experiência da intimidade (drasticamente impactada com o surgimento dos smartphones que nos permitem e estimulam a estar em contato permanente com os demais) constitui um importante eixo das transformações das subjetividades contemporâneas.
Ainda segundo a pesquisadora, a antiga valorização da experiência da intimidade vem gradativamente cedendo espaço para a exibição e exteriorização de si. A introspecção como possiblidade de autoconhecimento e construção de sentido para o que se vive e o que se é vem cedendo espaço para o seu movimento oposto: a superexposição de si nas redes sociais tendo como alvo o olhar alheio. Assim, a visibilidade e a conexão sem pausa constituem dois vetores fundamentais para os modos de ser e estar no mundo mais sintonizados com os ritmos e exigências da atualidade, pautando as formas de nos relacionarmos conosco, com os outros e com o mundo.
Partindo dessa compreensão, a autora nos alerta para a significativa transformação dos mecanismos de dominação que permeiam as produções de subjetividades. Comportamentos outrora combatidos e/ou compreendidos como subversivos, tais como criatividade e singularidade são agora, diz ela, “capturadas pelos tentáculos do mercado, que atiçam como nunca essas forças vitais e, ao mesmo tempo, não cessam de transformá-las em mercadorias”.
O capitalismo neoliberal triunfa, assim, através de formas mais sutis e mais eficientes de dominação. A submissão é voluntária e sua eficiência reside no fato de não funcionar através da proibição e da subtração, mas através do deleite e da realização, sublinha o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em A Sociedade da Transparência.
Ele aponta que na sociedade da exposição a existência em si não possui valor, ao menos que possa ser exteriorizada, especulada. Na tirania da visibilidade cada sujeito se torna o seu próprio objeto de publicidade e, aqui, o valor das experiências é subtraído ao valor de sua exposição. Essa sociedade padecida pelo excesso de visibilidade, excesso de atividades e de informações apresenta como consequência máxima o empobrecimento da experiência e o esvaziamento de sentidos, complementa o filósofo.
Ócio, trabalho e tempo livre
O conceito de trabalho sempre foi objeto de maior atenção do que o de lazer, sendo este, em geral, considerado a partir do momento em que a atividade produtiva cessa. A razão ocidental passou a atribuir ao trabalho valor indiscutível, desvalorizando os demais tempos a ele opostos, tais como o de lazer ou de ócio.
Embora corriqueiramente utilizado como sinônimo do lazer e do tempo livre, o ócio traz nuances singulares que o faz objeto específico de estudo. Derivado do latim otium e também do termo grego skholé, o ócio era valorizado na Grécia Antiga. Conforme descrito por Aristóteles, referia-se a uma atividade exclusiva dos cidadãos livres, tendo por característica a liberdade, o prazer e a perspectiva não utilitarista. Na compreensão do autor, a prática do ócio contribuiria para a realização pessoal e também à felicidade.
Outrossim, a noção e o conceito de ócio passaram por transformações em virtude dos contextos sócio-históricos. Na contemporaneidade, é comum encontrarmos o conceito ligado a termos pejorativos, tais como “vadiagem” ou preguiça. Não obstante, há que se ter consciência do caráter político de tal atribuição, pois a desvalorização do conceito vai de encontro à sua importância na construção de nossas subjetividades. A filósofa portuguesa Maria Manuel Baptista, nos seus Estudos de ócio e leisure studies: O atual debate filosófico, político e cultural, aponta ainda um aspecto “esquizofrênico” da interpretação do tempo livre na cultura, uma vez que parte da população trabalha em excesso, enquanto outra, tais como os desempregados ou idosos, sequer conseguem ocupar seu tempo (que já não é nem de trabalho nem de lazer). Note que, mesmo em condição de desemprego forçado, o sistema atribui ao tempo sem trabalho sentidos negativos ou pejorativos, ou mesmo a ausência de sentido, por este não interessar ao mercado.
Faz-se mister destacar a diferença entre o conceito de ócio e o de lazer e tempo livre. Conforme Cássio Aquino e José Clerton Martins, em Ócio, lazer e tempo livre na sociedade do consumo e do trabalho, o tempo livre é definido em contraponto ao tempo de trabalho, ao passo de que o lazer implica na utilização deste tempo livre em termos de entretenimento. Este, por sua vez, cooptado pela indústria e pelo mercado, acaba atendendo os fins de consumo e distração, ou ainda, manipulação.
O ócio difere daqueles por ser um tempo de afirmatividade, de liberdade intelectual, de criação e, por conseguinte, de crucial formação da subjetividade.
A experiência do ócio na contemporaneidade tecnológica
Uma sociedade fortemente midiatizada, seduzida pela visibilidade, pelo consumo e pela conectividade em escala planetária, permite-nos considerar que as experiências de ócio se tornam mais escassas e difíceis de serem acessadas ao mesmo tempo em que se tornam mais imprescindíveis e fundamentais de serem vividas. Como apontam José Carlos Martins e Maria Manuel Baptista, em O ócio nas culturas contemporâneas: teorias e novas perspectivas em investigação, em meio ao esvaziamento de sentidos produzidos na contemporaneidade pelo excesso de informação, ruídos de comunicação e hipervalorização das técnicas em detrimento do saber, torna-se imperativo retomar o sentido ontológico da experiência do ócio experimentado por nossos ancestrais na cultura ocidental.
De acordo com o filósofo francês Félix Guattari e a psicanalista brasileira Suely Rolnik, em Micropolítica: cartografias do desejo, os processos de subjetivação acontecem no meio social, mas são vividos e assumidos por indivíduos em suas existências particulares. De acordo com os autores, o modo pelo qual os indivíduos vivem essas experiências subjetivas oscilaria entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão e outra relação de expressão e criação. Na primeira, o individuo assimilaria e reproduziria a normatividade da cultura tal qual a recebe. Na segunda, o indivíduo se reapropriaria dos componentes subjetivos produzidos pela cultura produzindo um processo de singularização. O percurso que deriva no processo de singularização pode ser compreendido como o caminho da apropriação de si mesmo diante das experiências vividas. Tal compreensão faz eco à experiência do ócio, aqui entendida como a capacidade de mergulhar profundamente no mais íntima do próprio ser, interromper o fluxo automatizado e elaborar, a partir do conhecimento de si, sentidos para sua existência.
No entanto, em tempos de conexões mundiais no cyberespaço o caminho para construção da experiência do ócio parece cada vez mais desafiador. Um dos maiores obstáculos paira no manejo do tempo.
Na obra intitulada Psicosociologia do tempo livre, o psicólogo catalão Frederic Munné evidencia um importante paradigma presente nas dimensões dos diferentes tempos sociais por ele analisados: a possibilidade do tempo ser organizado com autonomia subjetiva (autocondicionado) ou organizado por demandas externas com pouca ou nenhuma autonomia subjetiva (heterocondicionado). Nesse sentindo, podemos questionar: existe tempo autocondicionado na contemporaneidade acelerada da hiperconexão? Ou ainda: existe autocondicionamento naquilo que estamos compreendendo por “tempo livre”?
Se compreendermos o ócio como uma experiência de interconexão entre o que acontece (dentro e fora) que desemboca num processo de significações e elaborações do vivido, perceberemos que a organização autônoma e subjetiva do tempo é condição sine qua non dessa trajetória. A experiência do ócio requer de nós tempo, atenção, disponibilidade para sentir, parar, suspender, silenciar. Tal movimento não obedece a lógicas padronizantes, universalizantes e mercadológicas da sociedade. Viver a experiência do ócio consistiria, assim, em caminhar na contramão dos padrões hegemônicos de velocidade, produtividade e performance da atualidade. Por tratar-se de uma experiência tecida em um universo pessoal, particular e subjetivo, a trajetória desagua no encontro e apropriação de si mesmo.
Como aponta Byung-Chul Han, em Sociedade do cansaço, parece ser necessário recuperar nossa capacidade contemplativa para compensar nossa hiperatividade destrutiva.
Somente tolerando o silêncio e o vazio que habita em nós seremos capazes de desenvolver algo novo e de nos desintoxicarmos de um mundo cheio de estímulos e de sobrecarga informativa.
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Bia Nobre é psicóloga clínica e escolar, mestranda integrante do Lesplexos (Laboratório de Estudos dos Sistemas Complexos), arteterapeuta e especialista em abordagem sistêmica familiar.