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(Foto: montagem internet)
Por Tomaz Amorim
Nenhum outro poeta no Brasil tem tantos versos decorados, na mente de jovens e velhos, quanto Mano Brown dos Racionais MC’s. Mas o RAP, embora seja ritmo e poesia, não é apenas poesia, nem quer sê-la. É também música somada a uma literatura oral, com origem no repente baiano e no Hip Hop estadunidense, que se comunica com uma sutileza e riqueza de referências de fazer inveja a muitas escolas estritamente literárias. Vida Loka Parte II, talvez a canção mais conhecida do grupo, é exemplar dos dispositivos técnicos utilizados por Brown para refletir esteticamente sobre as contradições do Brasil. O sétimo mandamento “não roubarás” é dramatizado em épica e lírica, sem moral da história ou conclusão, mas com aprendizado. Nenhuma política educacional de governo fez com que jovens periféricos refletissem com tanta profundidade sobre o dilema da criminalidade: vida longa, sob exploração brutal do Capitalismo que produz incessantemente desejos de consumo que não poderão ser realizados, ou vida breve, acelerada na super-dinâmica capitalista do crime, em que se arrisca o tempo de vida em troca da satisfação dos desejos (de poder e de consumo). Como sintetizado na fórmula brilhante de Brown: “Tempo pra pensar/ quer parar, que cê quer?/ Viver pouco como um rei/ ou muito como um Zé?”. Parte da aceitação do Racionais pelo seu público vem justamente da honestidade empática e da ausência de moralismo no tratamento de questões que são complexas como é complexa a realidade social brasileira. A mensagem não é “não faça”, mas: “se você fizer, tudo indica que isto ou aquilo vai acontecer como consequência, embora eu entenda o desejo de fazer”.
Vida Loka II é cantada sobre o trompete melancólico de um tema obscuro chamado, não por acaso, Theme From Kiss of Blood, encontrado por Brown em uma coletânea de trilhas sonoras de seriados policiais. Os primeiros versos justapõem imagens de consumo com imagens de miséria. A relação entre ambas ainda não é clara. A riqueza é associada com uma luta constante e com um lamento sobre sua necessidade (“Eu durmo pronto pra guerra/E eu não era assim”). O lamento reivindica um ideal, utópico e idílico, que se repete no rap, mas é impossível de se concretizar e sofre deboche por outro personagem, através da rima alucinante: “How, how Brown/ acorda sangue bom / aqui é Capão Redondo, tru / não é Pokemón”. A celebração do presente farto pelo eu-lírico (que neste momento é o próprio Mano Brown, cantor de sucesso de um grupo reconhecido nacionalmente) se ressente da luta que foi necessária e que obrigou o abandono do ideal: o tempo utópico é bloqueado pelo espaço distópico que é a Zona Sul. O rap segue com uma repetição variada da constatação inicial: a luta pela manutenção do poder de consumo é uma luta também contra os outros. A solução, então, não é fratricida: abandona-se a luta em prol de uma convivência conjunta. Desta convivência, ressurge o ideal, ainda que na Zona Sul. As condições da luta são declaradas em seguida: a criminalidade. Neste momento, a figura do lutador já não é mais Brown, mas um jovem encarcerado que arrependido do crime trocaria tudo para ter a convivência novamente com a mãe e o filho. Nesta revelação, o ideal ressurge com força através da invocação de um personagem bíblico: São Dimas, o bom ladrão, redimido por Jesus na cruz (“Aos 45 do segundo arrependido / salvo e perdoado / é Dimas o bandido”). O erro da aceitação da luta, na condição de crime, é absolvido a partir do arrependimento e a possibilidade inicial de ideal ressurge com força maior. Assim, não apenas o crime não é uma necessidade, mas quando cometido, não é o fim. Pelo contrário, é possibilidade de um ressurgimento.
A exaltação religiosa que segue no fim do rap não traz, no entanto, um final feliz. A redenção é bloqueada no último verso em que se afirma que “em São Paulo, Deus é uma nota de cem”. Mais uma volta é dada na questão da luta: bloqueados os ideais, idílico e o religioso, para negros e pobres, a luta por consumo se mostra como uma luta por felicidade. Miséria traz tristeza e vice-versa, portanto vai-se à luta, na forma do crime, que leva a outro tipo de miséria (o encarceramento ou o assassinato), que, paradoxalmente, abre a possibilidade mística do ideal até então bloqueado, reconhecido, no entanto, também como impossível em São Paulo, cidade em que Deus também se converte em objeto a ser alcançado pela luta, tudo reduzido à imagem e semelhança do dinheiro, principalmente as pessoas. No meio dos produtos que seduzem na forma de imagem de felicidade, lamentavelmente, estão as mulheres, não como sujeitos igualmente despojadas, mas como mercadoria das mercadorias, mercadoria para usufruto da qual se exige a aquisição de todas as outras. Com uma lírica parabólica, costurada com personagens, ritmo sedutor e referências contemporâneas e clássicas, Brown apresenta em altíssimo nível a contraditoriedade de nosso quadro social, de seus agentes simultaneamente ativos e passivos, vítimas e algozes, com possibilidade bloqueadas e em seguida redimidas, em permanente e vertiginoso movimento. Como não nos reconhecermos na sensação insuperável de impotência, na crença inquebrável de que “é só questão de tempo o fim do sofrimento”?
Tomaz Amorim tem 28 anos, nasceu e cresceu na cidade de Poá, às margens da Grande São Paulo. É poeta, faz doutorado em literatura e pensa misturadamente sobre três coisas: arte, amor e justiça social; e é autor do blog 3 parágrafos de crítica