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(Ilustração: Rafael Salvador)
PorVanessa Dourado
Olho nos olhos desta mulher que observa meu rosto.O brilho deles ainda é o mesmo da infância, ela sempre teve olhos de coragem – apesar de todo o medo carregado na alma. Observo seus fios de cabelo, longos. Depois de uma temporada sem tê-los percebo que não é à toa que o leão carregue tamanha juba. Os fios brancos trazem dentro de si as preocupações inúteis que a necessidade de cada tempo precisou para entender o mundo. Na pele, marcada pelo tempo, vejo as marcas da juventude que não está mais lá. Nos ombros, já cansados, sinto o peso dos aprendizados e do tempo que cobra. Olho para o corpo com alguns desenhos feitos para não esquecer de mim mesma quando o mundo parece desafiar a minha existência. Ao fazer isso, lembro também da dor que sente quem fere a própria pele e as certezas se fazem presentes. Gritando alto, impondo tudo aquilo que quero. Olho para o corpo, templo de realizações. Ao colocá-lo diante da beleza de existir, penso na importância de tê-lo são. Salvo do mundo que quer adoecê-lo.Tenho por ele um alto grau de zelo. Protejo-o contra os predadores, porque a carne já violada não permite concessões ao mínimo sinal de violência. Estou sempre alerta, a selva é um perigo constante. Os pés. Quando olho para eles, inevitavelmente com os olhos virados para o chão, com a cabeça virada para o chão; reflito sobre os caminhos, eles nunca estão lá. Aprendi que é preciso fazê-los com os próprios pés, mas é necessário olhar para frente. Isso dificulta o caminhar, pois é possível que muitas pedras os façam tropeçar, mas a dor do tropeço é didática. No meio de tudo, a alma, o coração. Muitos momentos dentro deles, muitos esquecimentos também. Mil contratos guardados nas gavetas. A consciência sempre os apresenta para que entenda-se o que não pode ser negociado na vida. Muitas cláusulas de proteção, colocadas por cada sofrimento vivido. Muitas outras de obrigação, nestas constam as condições mínimas para continuar vivendo em paz. A paz, para além do amor, para além da dor. Tudo é possível, exceto viver sem paz.
Vanessa Dourado é poetisa e feminista latino-americana