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Quem já teve a oportunidade de aproveitar a sexta-feira à noite de uma praça da periferia de Fortaleza vai entender um pouco mais do que vou falar adiante. Quem ainda não experimentou, está perdendo tempo! Pracinhas da periferia possibilitam o contato com tipos diversos, que fogem aos padrões homogeneizados, daqueles que dificilmente encontraríamos em nossas escolas, cursos, faculdades, condomínios… Têm também muitos personagens dos quais se podem captar incontáveis estórias e causos. Para além disso, têm muita gente boa e acolhedora, na maioria dos casos. Nas andanças que fiz pela cidade desde 1994, ano em que este menino matuto do interior veio morar na capital, conheci algumas delas: as do Jardim das Oliveiras, do Luciano Cavalcante, do Tancredo Neves, do Tasso, do Canindezinho, da Serrinha, da Verdes Mares, do Jardim Violeta, do José Walter, do Vila Verde, das Cajazeiras, do Pantanal, da Manibura, do Eusébio, do Pôr do Sol, do Itaperi, da Lagoa da Parangaba, umas três na Messejana, entre outras, que não vou recordar no momento em que rabisco estas linhas.
Entre tantas, uma tem, para mim, significado especial: a da Cidade dos Funcionários. Aí vocês vão dizer: – Mas a Cidade dos Funcionários não é periferia. No que prontamente respondo: – De fato, não é agora, mas já foi.
Bons tempos eram aqueles, até o final dos anos 90, em que a Cidade dos Funcionários ostentava no peito com orgulho o sentimento de pertença à periferia. Ruazinhas estreitas de piçarra ou, quando muito, calçamento; vizinhos a compartilhar suas conversas em cadeiras estrategicamente colocadas no “mêi das calçadas”; os “campim” de futebol a cada esquina – na mesma proporção dos terrenos baldios; a mercearia do seu Jacó; a barraquinha de pastel da dona Franci; a banquinha de bombons e cigarros do Manel; o clube do Ipec; os bares do Chiquim e do Pelé; a castanhola gigante da rua próxima à BR-116; os pés de azeitona preta espalhados por todo o bairro; a pesca de tarrafa no lago Jacareí; as corridas de cavalo no prado perto do Cambeba; a “mata de Greyscow”; as mangueiras e jambeiros a perder de vista e, claro, a sexta-feira da praça!
Sim, a sexta-feira da praça era um acontecimento que envolvia não somente os frequentadores assíduos da Cidade dos Funcionários, mas incluía também aqueles que vinham das redondezas: Parque Iracema, Vila Cazumba, Tancredo Neves, Manibura, Flor do Mato, Piçarreira, Jardim, Luciano, Castelão, Cajazeiras, Tasso e afins. As barraquinhas de bebida e espetinho de gato pé-duro (de siamês era mais caro) ficavam apinhadas. As cadeiras não davam conta de tanta gente que vinha à praça neste dia à noite. O jeito, para muitos, era beber em pé mesmo. Pessoas diversas confraternizavam suas angústias e frustrações, desejos e paixões, amores e dissabores, anseios e devaneios, e a sábia filosofia de bar, ao som do “forró da favela” e de muito brega para acalmar. De vez em quando, aqui e acolá, rolava um reggae, a pedido dos integrantes da União dos Grafiteiros (UG), que sempre marcavam presença.
Eu, em plena adolescência tinindo à flor da pele, me deslumbrava com tudo o que via, vivia, sentia, algo próprio da idade. Gostava de observar o movimento e as pessoas. Um dos que me chamava atenção era o Pancada: corpo franzino, cabelos escorridos de índio, pele negra, sorriso largo. Parecia sempre feliz. Tinha essa alcunha não porque gostasse de bater ou de apanhar, mas pelo costume que tinha de escutar muito funk no rádio, no tempo dos bailes do Agito Jovem e da Superdance. De tanto ouvir o locutor dizer: “Solta DJ mais uma pancaaaaaadaaaaa….”, incorporou o nome devido ao gosto pela sonoridade da palavra e nunca mais largou. Nunca descobri o seu nome. Alguns dizem que é Artur, mas tenho lá minhas dúvidas se ele é mesmo meu xará. A mim, pelo menos, nunca revelou.
Pois bem, o Pancada, assim como muitos jovens da Cidade dos Funcionários, era mais um da UG. Gostava de ficar na praça feito macaco, pulando de galho em galho; digo, de barraquinha em barraquinha. Passava pela do Marujo, depois se escorava na do Chicute, na sequência trocava um “dedim de prosa” na da Lôra, vez ou outra tomava um burrim na da Shirley, mas a que ficava mais tempo era na do Carmênio, pois a parte de trás da barraca funcionava como o recanto da “perdição” (ou seria da “achação”?), no qual se juntava com os demais para tomar cachaça e, indiscriminadamente, fumar o matinho verde que tanto apreciava. Revezava-se entre os tragos de Ypióca prata e os de erva. Ao fim da noite, o vi algumas vezes indo embora no “piloto automático”. Para quem não sabe, o “piloto automático” é aquele instinto de sobrevivência que todo bebum tem, mesmo em casos de completa embriaguez, para conseguir chegar são (quer dizer, “são” definitivamente não!), mas salvo em casa.
Mas a praça da Cidade tinha personagens mais interessantes, como o Pio, por exemplo. O Pio era um cara que adorava cachaça (não muito diferente dos outros frequentadores do local), introspectivo, espontâneo e que tinha muitos amigos imaginários. Nunca se concentrava numa conversa com os “pracianos” ao seu redor, mas desembestava a falar com pessoas que só ele via. Dizem que de louco todos nós temos um pouco. No caso do Pio, ele tinha muito. Um dia, desapareceu e não foi visto por muitos anos. Alguns davam conta de que tinha ido parar no Mira y Lopez, outros diziam que havia morrido, mas depois de muitos anos o encontraram na praça do Liceu, na Messejana, ainda com o mesmo costume de conversar com seus amigos invisíveis.
Entre as figuras carimbadas da praça, tinha também a Nêga. Pense, mas pense numa mulher danada que derrubava qualquer cabra metido a “bebedor” de cachaça. Perdi as contas das vezes em que, bebendo com a dita cuja, muito pinguço pediu penico enquanto ela continuava lá, tranquila e serena, como se não tivesse entornado dezenas de doses cavalares de pinga goela abaixo. Incrível! Sem dúvida, se houvesse uma competição mundial de bebedores de cana, a Nêga ganharia fácil, fácil.
Tinha também o Sodom. O que o cara tinha de gente boa tinha também de arengueiro. Às sextas-feiras, chegava por volta de 7 horas da noite na praça, manso, tranquilo, afeito a brincadeiras e jogando conversa fora. O problema dele era a bebida. Depois que derrubava uns dois, três litros de cana, queria, então, derrubar os outros. Toda, mas toda sexta-feira o Sodom arrumava uma confusão, para variar. E não importava se fosse um amigo de longa data ou um mero desconhecido. Aliás, acho que ele encrencava mais com os amigos, que, cientes da recorrência da situação, faziam o jogo do “deixa quieto”, do que com desconhecidos. Eu mesmo já fui um dos contendores que tive o desprazer de vê-lo cismado comigo. Como amigo, deixei quieto também – vale dizer que espertamente, já que ele era bem mais encorpado do que eu à época.
A praça tinha ainda o Alma de Gato, o Zé Aurélio, o Fonfón (que era fanho, daí o apelido), o Batata e muitos outros camaradas que dariam um livro maior que a Bíblia e o Alcorão juntos. Logicamente, com histórias nada sacras.
Hoje, a praça da Cidade ainda respira a brisa suave das centenárias mangueiras que compõem sua paisagem. Ainda há, sim, a convergência diária de muitos moradores do bairro até lá, que se cruzam na quadra de futebol ou nas barraquinhas de bebida e espetinho de gato pé-duro (de siamês continua sendo mais caro). No entanto, as sextas-feiras, que já chegaram a concentrar centenas – quiçá milhares – de pessoas por estas bandas da cidade, hoje são só mais um dia da semana como outro qualquer. Novos tempos.
Para mim, o convívio com tanta gente, alguns tipos bem parecidos comigo, outros bastante diferentes, me trouxe aprendizados diversos e valiosos que carregarei sempre comigo, sem pieguismos. Um deles é que a Cidade já foi ainda mais legal quando era um bairro distante do corredor comercial e imobiliário de Fortaleza. Um outro é que eu adoro um gatim tostado! Se vier com farofinha então, huummm…..
*Crônica publicada também no Portal Vermelho