3 Comentários
(Ilustração: Banksy)
Por Artur Pires
As coisas não caminham muito bem. O mundo anda às avessas, anômalo, de embrulhar o estômago. Dia desses três garotas, crianças, tentaram assaltar uma mulher na Praia do Futuro, em Fortaleza. Uma delas esfaqueou a vítima. Queriam dinheiro para comprar roupas de grife e drogas. Elas, as crianças, não têm dinheiro, tampouco roupas de grife. Mas a sociedade grita a todo instante que elas precisam vestir-se assim e assado para que sejam aceitas, incorporadas, admitidas à vida social. O que elas fazem, então? Vão atrás de satisfazer o desejo, o fetiche consumista na marra, na faca, literalmente! Aí os arautos do pavor e os jornalistas cínicos promovem um linchamento verbal contra as crianças. Esquecem, ou melhor, escondem os reais motivos que as levam a praticarem tais atos: a sociedade do consumo e seus padrões de comportamento fetichizantes. Apegam-se a soluções reducionistas e fascistas (redução da maioridade penal e “bandido bom é bandido morto”), que em nada vão contribuir para mudar esse quadro.
As coisas não caminham nada bem. Crianças pobres esfaqueiam pessoas, não brincam mais: fazem malabarismos nos sinais – não por brincadeira, mas porque têm a obrigação de levar o “de comer” para casa -, reclamam fome com olhos desesperançosos. Tão novas e a esperança de dias melhores já lhes escapa. A sociedade normaliza tudo isso. Você se lembra da última vez que viu uma dessas crianças? Sim, ver mesmo, conversar, senti-la, saber de onde vem, para onde vai, o que pensa da vida… Geralmente, a sociedade não as vê; protegida por trás dos vidros dos carros, a classe média passeia os olhos sobre elas superficialmente, coça os bolsos, joga uma moeda e se vai!
As coisas não vão indo bem. A polícia passa o sarrafo nos manifestantes. Mas, nos jornais, as vidraças quebradas dos bancos valem mais a manchete do que o sangue que jorra dos que protestam. É preciso, para a imprensa convencional, deslegitimar as manifestações. Ela, a mídia, tem medo do povo nas ruas. É mais importante, para a mídia empresarial, defender a todo custo a “sagrada propriedade privada”. Se une à polícia e, em uníssono, transmitem uma versão única: vandalismo! Sua narrativa é uma só! Na sociedade atual, boatos da mídia e da polícia adquirem, de imediato, o peso indiscutível de provas históricas seculares. “A imbecilidade acha que tudo está claro quando a televisão mostra uma imagem bonita, comentada com uma mentira atrevida. A alienação do espectador em favor do objeto contemplado se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive” (Guy Debord, A sociedade do espetáculo). Ou seja: uma imagem – manipulada – vale mais que mil palavras! Voltando ao quebra-quebra das agências bancárias, Brecht indagava, muito tempo atrás, antes mesmos do capitalismo financeiro, “o que é roubar um banco comparado com fundá-lo?” Essas instituições controlam, com uma eficiência de dar medo, as sociedades hoje em dia. Amontoam-se sobre lucros exorbitantes e riem da cara dos explorados. No Brasil, por exemplo, nos últimos doze meses, os banqueiros lucraram 59 bilhões de reais, à custa da exploração dos trabalhadores bancários e da própria sociedade, por meio das taxas abusivas e da especulação financeira – dinheiro fictício gerando mais dinheiro fictício. “A maior parte do capital de banco é pois puramente fictícia. Conforme sua organização formal, o sistema bancário é o produto mais artificial e mais desenvolvido do modo de produção capitalista. Ao mesmo tempo, o banco e o crédito tornam-se o meio mais poderoso para estender a produção capitalista para além de seus próprios limites, e um dos veículos mais ativos das crises e da especulação” (Karl Marx, O Capital).
As coisas caminham mal. A mídia empresarial faz o que quer com os fatos, os transforma, os distorce, revira-os de cabeça para baixo, tudo em nome dos seus negócio$$. Quando se fala em regular e democratizar os meios de comunicação, ela brada raivosa que querem censurá-la. Balela! Diversos países no mundo têm órgãos reguladores de comunicação social. Não querer ser regulada é querer sustentar o oligopólio midiático. À mídia golpista, não interessa a comunicação social para todos, mas o jornalismo de interesse, da troca de favores, do hipócrita tapinha nas costas, de manutenção do status quo, de atrelamento à sociedade do espetáculo. Ela, a mídia venal, não discute sequer minimamente alternativas para um novo modelo de sociedade. Ela quer que as coisas continuem caminhando mal para a maioria, porque assim ela caminha num mar de rosas.
As coisas vão de mal a pior. Fortaleza chora, pois o Cocó sangra. O prefeito e o governador impuseram, à base da força policial, a construção de um monstrengo de concreto no meio do parque ecológico. Os acampados, os heróicos fortalezenses que se dispuseram por três meses a ocupar o parque, foram dali retirados a balas de borracha e bombas de gás (todo o apoio aos acampados do Cocó!). Os executivos municipal e estadual, em pleno ano de 2013, ainda pensam que progresso é dar vez aos carros particulares. É a ditadura do automóvel! Para eles, construir viadutos é mais importante do que preservar o verde. Os mesmos viadutos que um dia irão abrigar, embaixo de suas marquises, outras crianças que reclamam fome e têm olhos de tristeza. Provavelmente virão dali perto, da comunidade dos trilhos. Pois ali, nos trilhos e nas comunidades circunvizinhas, Roberto Cláudio e Cid não fizeram nada para mudar aquela realidade. Quer dizer, vamos ser justos, o governador pretende fazer sim: remover várias famílias para abrir caminho ao VLT. É a vida, a história de famílias que se sentem pertencentes àquele lugar, dando passagem à “modernidade cidista”. O sociólogo francês Guy Debord dizia que “o urbanismo é a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário”. É um urbanismo predatório, que se propõe, com ímpeto ferrenho, a isolar as pessoas, afastá-las das ruas, dos espaços coletivos, das praças. Ainda segundo Debord, “do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das ‘multidões solitárias’”. Isso é importante para a manutenção dessa ordem simbólica.
As coisas vão indo muito mal. Uma substância como a cannabis sativa é proibida socialmente e seu consumo é tachado por esta mesma sociedade como marginal. Entretanto, mulheres seminuas sorriem e se exibem na tevê nos comerciais de cerveja em horário nobre, quando inúmeras pesquisas científicas já deixaram claro que o cigarro e o álcool acarretam muito mais danos à saúde do que a maconha. “Desde pequeno você é induzido a fumar, induzido a beber, ouvindo a tevê falar: diga não às drogas, use camisinha e pare de brigar, mas beba muito álcool até sua barriga inchar” (A culpa é de quem? – Planet Hemp). Sabe por que isso acontece? Porque a indústria da bebida tem um lobby poderosíssimo, com muita influência dentro da jogatina financeira internacional. Ademais, a história da criminalização da maconha tem total relação com a criminalização da negritude e da pobreza. A erva foi proibida no Brasil, por volta dos anos 30 do século passado, no mesmo contexto no qual foram proibidos o samba e a capoeira, porque eram costumes dos negros. “Os negros já fumavam erva antes d´África deixar, mas os senhores proibiram por não querê-los libertar, e os senhores de hoje em dia estão proibindo também, se o pobre começa a pensar parece que incomoda alguém” (A culpa é de quem? – Planet Hemp). A mesma lógica serve para os Estados Unidos – país-símbolo da ineficiente guerra às drogas -, que proibiu a maconha em seu território porque seu uso estava bastante relacionado com os imigrantes mexicanos que cruzavam a fronteira.
Enfim, enquanto a legalização não vem, a polícia vai continuar comendo o troco dos traficantes nas favelas – os peixes pequenos desse comércio -, jovens, em maioria negros, vão continuar se matando pelo controle da atividade nas comunidades, e os grandes tubarões, aqueles que administram as rotas internacionais do tráfico, vão continuar rindo debochadamente da cara do mundo, acenderão seus charutos cubanos, tomarão seu whisky escocês, e se refestelarão numa espreguiçadeira de alguma praia paradisíaca de águas cristalinas pras bandas do Índico. Nessa sociedade, do consumo de aparências, a máfia encontrou seu espaço, sente-se em casa. É um engano, hoje em dia, tentar opor o Estado às máfias internacionais de drogas, de armas, do ramo imobiliário, dos altos cargos políticos, dos bancos, da indústria do entretenimento, dos transportes, dos meios de comunicação. São farinhas do mesmo saco. Estão profundamente enredados numa troca de favores permanente. Brasília é um exemplo clássico de máfia política que se elege financiada por outras máfias. Foucault, em seu ensaio As redes de poder, diz que quando o capitalismo percebeu, lá pelo século XVIII, que muitas transações estavam ocorrendo à margem da legalidade, não tratou de pôr um fim a elas, mas sim de capturá-las para baixo das suas asas, lucrar também com os processos ilegais. O ilegalismo foi então um dos responsáveis pelo desenvolvimento da sociedade capitalista. E é ainda hoje! A ilegalidade das máfias se integra ao movimento cíclico que faz girar a roda-gigante da economia mundial. Mas tudo isso é sorrateiramente cortinado. “Os piores criminosos tu nunca vai saber ao certo, dá arrepio imaginar que quase nada é descoberto” (Até quando Brasil Colônia? – Oriente). Debord fala sobre isso ao afirmar que “o espetáculo fez trinfar o segredo”. Ou seja, as máfias internacionais, com ramificações nos diversos países, se locupletam ininterruptamente, são profundamente cúmplices à sociedade do consumo, conspiram sagazmente para o controle eterno, num jogo às sombras, escondido, mas bastante eficiente. É nesse sentido que Marx, n´O Capital, diz que “em cada país, os grandes industriais de um ramo determinado se agrupam em um cartel para regulamentar a produção”. “Antigamente, só se conspirava contra a ordem estabelecida. Hoje, conspirar em causa própria é uma nova profissão em franco desenvolvimento. Sob a dominação espetacular, conspira-se para mantê-la e para garantir o que só ela pode chamar de seu bom andamento. Essa conspiração é parte integrante de seu funcionamento” (Guy Debord, A sociedade do espetáculo).
As coisas estão indo pelo ralo. Pescadores estão sendo expulsos de suas casas à beira-mar para gringos construírem resorts e depois explorarem a força de trabalho dos… pescadores. Índios são expulsos de suas terras para que ruralistas abocanhem latifúndios para o plantio de soja e para que o Governo Federal construa hidrelétrica. “Os índios dizimados pelo poder do Estado, hoje usando Nike e por doenças afetados” (Até quando Brasil Colônia? – Oriente). Moradores de favelas são submetidos a constrangimentos rotineiros, abordagens violentas, abusos, podendo até desaparecer por causas misteriosas após serem recolhidos para uma averiguação policial. Se morarem onde funciona uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), o risco do desaparecimento aumenta consideravelmente.
As coisas estão indo para o fundo do poço. O deus da época é o consumismo. A deusa, a publicidade. Juntos, eles dão as cartas nesse jogo de aparências. A publicidade vende a ilusão da felicidade, embrulhada e dissipada ao longo do ano nos dias das mães, dos pais, das crianças, dos namorados, páscoa, natal, etc. Usa cada vez mais técnicas rebuscadas de condicionamento e fetiche. A liberdade e a essência humana escapam às nossas mãos, pois vão dando lugar ao aprisionamento à lógica do consumo e à “artificialização” da vida, ao movimento do não-vivo. Os shoppings centers são mais importantes que as praças de bairro. Os carros mais que os pedestres. O viaduto e a ponte sobre o Cocó mais que o próprio Cocó. O dinheiro mais que tudo! Tudo isso é normalizado por uma série de códigos e condutas sócio-morais que vão se introjetando sorrateiramente na psique coletiva das sociedades. Dessa forma, vive-se um totalitarismo, uma ditadura travestida de liberdade: a liberdade de – adivinha? – comprar!
Aquele que não se conforma com as coisas como elas estão, que não quer sentar “no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar” (Ouro de Tolo – viva Raul!) tampouco quer ficar “em casa, guardado por deus, contando os seus metais” (Como nossos pais – Belchior), e, principalmente, que milita para que elas mudem, é “coisificado” como louco ou – palavra da moda – vândalo. Contudo, ser tachado de louco ou vândalo por essa sociedade doentia é sinal de sanidade e resistência, marca de que ainda não se anestesiaram nem transigiram ao estado das coisas, prova inconteste de que ainda pulsam. Isso quer dizer que as coisas podem mudar. Sim, as coisas podem mudar! A loucura e o vandalismo serão cada vez mais importantes para essa mudança social revolucionária! Por isso, sejamos cada vez mais loucos! Sejamos cada vez mais vândalos!
““Um brinde aos loucos. Aos desajustados. Aos rebeldes. Aos criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que vêem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para a frente. E, enquanto alguns os vêem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam.” (Jack Kerouac)
*Artigo publicado também na Rede Anote.